Domingo de Circo
Toda tua chegada nessa radiosa manhã de domingo embandeirada de infância. Solene e festivo circo armado no terreno baldio do meu coração.
As piruetas do palhaço são malabaristas alegrias na vertigem de não saber o que faço.
Rugem feras em meu sangue; cortam-me espadas de fogo.
Motos loucas de globo da morte, rufar de tambores nas entranhas, anúncio espanholado de espetáculo, fazem de tua chegada minha sorte.
Domingo redondo aberto picadeiro, ensolarado por tão forte ardor, me refunde queima alucina:
olhos vendados,
sem rede sobre o chão,
atiro-me do trapézio
em teu amor.
Do livro A Arte de Semear Estrelas, de Frei Betto.

domingo, 2 de janeiro de 2011

POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA

Reformismo revolucionário: a estratégia da esquerda latino-americana

"Estado", "política", "história", "revolução" são as ferramentas da esquerda latino-americana para atacar as consequências e também as causas do capitalismo, promovendo ao mesmo tempo a integração do Continente em termos políticos, econômicos, sociais e culturais. A estratégia pode ser condensada na fórmula do pensador judaico-romeno Lucien Goldmann: "reformismo revolucionário".

Algumas palavras pareciam condenadas à lata de lixo, sob a pressão doutrinária das últimas décadas. "Estado" é uma delas. Acusado de perdulário, mastodôntico e ineficiente em contraposição à livre iniciativa, apresentada como paradigma, o aparelho estatal foi execrado para justificar as desregulamentações e o desmonte que vitimaram os serviços públicos. Embalados pelo canto de sereia do fenômeno divulgado na condição de uma tendência inexorável, que converteria o planeta em uma aldeia global, muitos inclusive, iam ao cúmulo de classificar de inútil a escolha de presidente para os Estados nacionais. As eleições teriam perdido o sentido frente a uma realidade na qual as linhas principais da política econômica seriam ditadas pelo FMI e o Banco Mundial. Das "Diretas já" às "Indiretas sempre", um passo à frente, dois atrás.

Leia mais:
No primeiro dia de mandato, Dilma se reúne com autoridades internacionais 
Em Brasília para posse, Juan Manuel Santos se reúne com Chávez e Hillary Em discurso de posse, Dilma promete fazer de América Latina o centro da política externa Posse de Dilma é destaque na imprensa estrangeira
Amorim deixa cargo com sensação de dever cumprido e faz balanço da política externa do governo Lula
Amorim: decisão sobre Battisti não prejudicará relação com a Itália Amorim recebe prêmio '100 pensadores globais' de revista nos EUA
Discípulo de Amorim, Patriota é confirmado por Dilma no Itamaraty 
Considerando que, quem fala Estado fala política, esta sob a hegemonia do neoliberalismo foi também minimizada e criminalizada. Basta lembrar o argumento de Fernando Henrique Cardoso para reprimir a greve dos petroleiros no primeiro mandato: "Trata-se de um movimento... político". Pior, contrário à intenção tucana de privatização da Petrobrás. Dê-lhe tanques.
Analiticamente, para o príncipe do Consenso de Washington, os petroleiros cometiam então três delitos: a) manifestavam-se fora do Congresso Nacional, único espaço para a prática política tida por legítima; b) intervinham como um corpo coletivo organizado, quando apenas a desobediência civil de indivíduos avulsos era admitida; c) defendiam o patrimônio público construído por várias gerações, numa época em que moderno significava entreguismo. A repressão manu militari sobre os trabalhadores mobilizados marcou o início de um retrocesso civilizacional de resultados perversos para o povo brasileiro.
FHC, no caso, agiu de acordo com uma antiga aspiração das elites, eliminar a política das ruas e, no limite, esconjurá-la para longe do próprio Estado. Não à toa, Platão propunha para os postos hierárquicos de mando na sociedade os "filósofos". Saint-Simon, os "industriais". John Galbraith, os "tecnocratas". Hoje fala-se nos "gestores", na tentativa ainda de elidir a dinâmica objetiva da luta de classes e despolitizar a vontade subjetiva dos governantes. No fundo, essa visão gerencial sobre o exercício do poder central reflete a autonomização, mais imaginária que real, das políticas públicas no que concerne às questões estruturais e ao conteúdo de cada projeto político-ideológico. Como se as políticas públicas não tivessem governo.
Compreende-se assim que um dos cinquenta executivos de destaque entre os países emergentes, conforme a tabela de celebridades do Financial Times, tenha descrito Dilma Rousseff como "uma gestora pública, tecnocrata de boa formação, de bom senso e experiente, o que será muito bom para o Brasil" (Zero Hora, 12/12/2010). A completa assepsia política da descrição traduz o desejo atávico das classes dominantes, desde a remota Antiguidade.
Do triunfalismo à surpresa
Francis Fukuyama, em 1989, com espalhafatosa cobertura midiática, anunciou o fim da história e fixou um programa máximo (sic) para o Ocidente: a economia de mercado e a democracia representativa. Inaugurava a ideologia imperialista da Nova Ordem Mundial. A senha para um padrão implacável de relações econômicas, que não aceitavam discussão e cobravam obediência imediata sob ameaça de expulsar os atores da cena e aprisioná-los em uma dependência abjeta, como se fossem escravos de novo, denunciou o geógrafo Milton Santos com o neologismo "globalitarismo", para realçar o viés totalitário da globalização neoliberal.
A utopia socialista que movia a rebeldia era condenada a um passado jurássico, junto com os ideais da cidadania ativa. O capital, triunfante, decretava a paz perene. Como no verso de T. S. Eliot, "sonhando com sistemas tão perfeitos em que o bem seja de todo dispensável". Doce ilusão. O Zapatismo, que veio à luz no emblemático dia em que entrava em vigor a North American Free Trade Agreement (Nafta), o tratado de livre comércio dos Estados Unidos com o Canadá e o México, em 1° de janeiro de 1994, mostrou que a recusa à exploração e à opressão mantinha-se acesa sob as cinzas. Em paralelo, a experiência do Orçamento Participativo nos anos 90 revelou que a socialização da política é o melhor antídoto à apatia das camadas empobrecidas, à corrupção e às demasias burocráticas da administração pública.
Em uma conjuntura nacional e internacional repleta de adversidades, a criatividade e a irresignação estiveram localizadas no eixo da resistência que ligou Chiapas a Porto Alegre simbolicamente. Esses centros laboratoriais acuaram o medo e fizeram ressurgir a esperança. Os pobres tornavam a ser cidadãos. A dominação capitalista não afigurava-se como uma fatalidade ou um destino, "surpreendendo aqueles que não acreditavam mais na possibilidade de mudanças sociais e que haviam abandonado a história", enfatizou a socióloga Laura Tavares Soares (Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina, SP, Ed. Cortez, 2000).
A dialética corcoveava, rejuvenescida na linguagem sem esquematismos do subcomandante Marcos e nas assembléias comunitárias do prefeito Olívio Dutra. Preparava-se o terreno para o I Fórum Social Mundial. Movimentos tradicionais (com vetor no trabalho) somavam-se aos contemporâneos (feministas, ecológicos, contra a fome, etc.) para questionar a gramática da exclusão, reatualizar o valor da solidariedade e devolver a dignidade à política. As promessas do paraíso reaganista, calcadas no fetichismo da mercadoria, esfumavam-se. As bandeiras vermelhas regressavam às praças. Mas havia pedras no caminho. E a "imprensalão" tencionou à procura de desvios, fabricando uns tantos com sensacionalismo e ódio de classe. Assustados e incapazes de uma leitura correta sobre os acontecimentos, os setores médios afastaram-se da estrela guia.
A militância petista não se intimidou, porém, e a caravana popular seguiu avante, comunicando-se em portunhol. Ao lado, os cães ladravam e ensaiavam o frustrado impeachment do presidente Lula. O Estado reassumia, aos poucos, suas funções clássicas para atender as demandas da população, e um papel regulatório na economia para alavancar o desenvolvimento sustentado e combater as desigualdades sociais e regionais. "Estado", "política", "história" foram palavras recontextualizadas graças à ascensão das forças antineoliberais na AL.
Céu com nuvens carregadas
Vislumbram-se outras batalhas no horizonte. A direita articulada em torno do Tea Party, o nó górdio do Partido Republicano dos EUA, em um ambiente recessivo e agravado com o corte nos gastos sociais, redobra a disposição conservadora de organizar o conjunto das relações sociais pela premissa da mercantilização de tudo e todos, com um script que mescla individualismo e belicismo. Se o roteiro causa a sensação de um déjà vué porque o novíssimo ideário direitista reconduz o mundo ao caos societal, isto é, à condição natural hobbesiana que faz do homem lobo do homem. A barbárie continua pedindo passagem para romper o contrato social de proteção aos direitos e espalhar a miséria e o sofrimento. Fuck you!
A postura intransigente do Tea Party aponta para uma posição de confronto com as nações que, soberanas, buscam superar o status quo. Sem que se possa esperar um freio à sede de sangue da ultradireita (vide post de Emir Sader: Obama e Lula, 09/12/2010) e nem consideração com o princípio elementar da liberdade de expressão (vide a perseguição, esta de fato terrorista, ao portal do Wikileaks). Perigos e dilemas rondam o futuro. O Norte direitiza-se com extremismo; o Sul esquerdiza-se, embora com moderação e respeito à institucionalidade. É possível antecipar tensões e retaliações, com o alargamento da crise, do desemprego e da anomia social no território estadunidense. O Irã que se cuide.
Enquanto isso, o Brasil avança, reduz a pobreza, projeta um Estado de bem-estar social. Diante das inusitadas conquistas, referendadas com a vitória de Dilma, Lula utiliza o bordão "como nunca antes..." para chamar a atenção sobre o que está em curso no país. Tem nome, "Revolução Democrática". Rafael Correa, o presidente do Equador, refere-se à "Revolução Cidadã". Hugo Chávez, o presidente da Venezuela, à "Revolução Bolivariana", em homenagem ao lendário libertador Simon Bolívar. Evo Morales, o presidente da Bolívia, à "Revolução Democrática e Cultural" como uma ponte para o "Neo-socialismo".
O denominador comum é a idéia de "revolução", mais um mote maldito esquecido no porão que sacode a poeira e dá a volta por cima. Nenhuma alusão à luta armada, mas sim à elevação do nível de consciência das maiorias, ao empoderamento dos movimentos sociais, aos vínculos orgânicos desses com os partidos políticos comprometidos com as mudanças e aos progressos institucionais para aprofundar a democracia e a justiça social. "Não façam o que eu fiz", aconselhou Fidel Castro em reunião com um grupo de líderes reformadores sobre a questão do método (Che Guevara, 80Th Anniversary, Trilogy Collection, DVD).
"Estado", "política", "história", "revolução" são as ferramentas da esquerda latino-americana para atacar as consequências e as causas do capitalismo, promovendo ao mesmo tempo a integração do Continente em termos políticos, econômicos, sociais e culturais. A estratégia pode ser condensada na fórmula do pensador judaico-romeno Lucien Goldmann: "reformismo revolucionário". Paradoxal, só na aparência, como o realismo mágico de nossa literatura. La nave va.

* Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRG)

**Texto originalmente publicado no 
Adital


Siga o Opera Mundi no Twitter      
Conheça nossa página no Facebook
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário