Domingo de Circo
Toda tua chegada nessa radiosa manhã de domingo embandeirada de infância. Solene e festivo circo armado no terreno baldio do meu coração.
As piruetas do palhaço são malabaristas alegrias na vertigem de não saber o que faço.
Rugem feras em meu sangue; cortam-me espadas de fogo.
Motos loucas de globo da morte, rufar de tambores nas entranhas, anúncio espanholado de espetáculo, fazem de tua chegada minha sorte.
Domingo redondo aberto picadeiro, ensolarado por tão forte ardor, me refunde queima alucina:
olhos vendados,
sem rede sobre o chão,
atiro-me do trapézio
em teu amor.
Do livro A Arte de Semear Estrelas, de Frei Betto.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Parangolé: anti-obra de Hélio Oiticica


Nildo da Mangueira, com Parangolé, 1964






por Jardel Dias Cavalcanti 

A idéia da criação dos Parangolés aparece para Oiticica no momento de seu envolvimento com o samba. O interesse por esta dança, por sua vez, nasceu, segundo o artista, de "uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão". O samba leva o participante a uma imersão no ritmo, na verdade, a uma identificação completa e vital do ato com o ritmo, fazendo com que o seu intelecto permaneça obscurecido diante das imagens móveis, constantemente improvisadas, rápidas e inapreensíveis durante a dança. Esta experiência da "lucidez expressiva da imanência", obtida na dança, leva Oiticica a criar o Parangolé.

Parangolé são capas, estandartes, bandeiras para serem vestidas ou carregadas pelo participante de um happening. As capas são feitas com panos coloridos (que podem levar reproduções de palavras e fotos) interligados, revelados apenas quando a pessoa se movimenta. A cor ganha um dinamismo no espaço através da associação com a dança e a música. A obra só existe plenamente, portanto, quando da participação corporal: a estrutura depende da ação. A cor assume, desse modo, um caráter literal de vivência, reunindo sensação visual, táctil e rítmica. O participante vira obra ao vesti-lo, ultrapassando a distância entre eles, superando o próprio conceito de arte.

Mas que fique claro, ao vestir o Parangolé o corpo não é o suporte da obra. Oiticia diz que se trata de "incorporação do corpo na obra e da obra no corpo". Nessa espécie de anti-arte, diz Oiticia, "o objetivo é dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora".

Com o Parangolé Oiticia propõe ao espectador (agora participante) em lugar de meramente contemplar a cor, vestir-se nela. Este simples ato, que libera o participante do domínio da sensação visual, produz uma "maravilhosa sensação de expansão", criada pela incorporação dos elementos da obra numa vivência total do espectador.

O crítico Mário Pedrosa comenta a origem da criação do Parangolé por Oiticica: "Foi durante a iniciação ao samba, que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para a experiência de tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade".

Dá-se início a uma nova visão de como o ser humano e uma obra de arte podem integrar-se: a morte do espectador e o nascimento do participante.

No Parangolé, portanto, o motor ontológico é a capacidade de revelar a necessidade da ação. O vestir contrapõe-se ao assistir. Oiticica explica: "O 'ato' do espectador ao carregar a obra revela a totalidade expressiva da mesma na sua estrutura: a estrutura atinge aí o máximo de ação própria no sentido do 'ato expressivo'. A ação é a pura manifestação expressiva da obra". Para que a ação aconteça, exige-se a participação inventiva e improvisada do expectador, como acontece no samba.

A partir daí, o próprio conceito tradicional de exposição desaparece, pois nada significa "expor" Parangolés. Por isso, dizer que o Parangolé de Oiticica está sendo exposto é um contra-senso. O que importa agora é a criação de espaços livres para a participação e invenção criativa do espectador. O objetivo da participação, nos indica Hélio Oiticica, "é dar ao homem, ao indivíduo de hoje, a possibilidade de 'experimentar a criação', de descobrir pela participação, esta de diversas ordens, algo que para ele possua significado."

O que o Parangolé nos propõe é o deslocamento da experiência do campo intelectual racional para o da proposição criativa vivencial. E isto só é possível com a radicalização da vivência através da manipulação, do movimento e da utilização plurisensorial da "obra". Novamente damos voz a Oiticica: "O que interessa é justamente jogar de lado toda essa porcaria intelectual, ou deixá-la para os otários da crítica antiga, ultrapassada, e procurar um modo de dar ao indivíduo a possibilidade de 'experimentar', de deixar de ser espectador para ser participador."

Parangolé, portanto, não é uma "obra", mas o "lugar" no qual a experiência artística se funda. Seu objetivo é uma intensificação da vida, da agitação do pulso, da batida do coração, levando o indivíduo a trocar a percepção artística pela expressão artística.

Num primeiro momento, Oiticica aproxima-se de Marcel Duchamp no tocante ao questionamento do estatuto da arte: a obra de arte é apenas o ato artístico mumificado em um museu. A proposta da "antiarte" consiste em sensibilizar o cotidiano através da repotencialização do "coeficiente" criativo do indivíduo, sem pretender impor um padrão estético. Funda-se aqui uma ética para a qual a liberdade reside numa tentativa constante de autodesprendimento e auto-invenção.

Num segundo momento, superando a idéia duchampiana de que o que determina o valor estético já não é um procedimento técnico, um trabalho, mas um puro ato mental, uma atitude diferente em relação à realidade, Oiticica leva o espectador a explorar a própria "fonte" da linguagem, ou melhor, recapturar a linguagem em sua fonte. Despojando a arte de qualquer fim transcendente ou estético, faz com que subsista apenas o mero ato artístico.

A arte agora está livre para assumir-se como um objeto de experiência, anunciando, inclusive, o fim da instituição da autoria. O Parangolé, decididamente anti-retórico, materializa-se enquanto experiência e desmaterializa-se enquanto arte. O desejo de uma experiência artística única, intransferível, entra em choque com a instituição da arte, o consumo mercadológico do objeto artístico, o primado da técnica e a emoção "estética". Deixa de ser puramente arte para virar um embate com o "mundo" da arte.

O que é proposto por Oiticica é uma estética da existência e não dos objetos, das formas de vida, não das formas de arte, sendo a obra apenas o ato de fazer a obra. Ou seja, uma ética do compromisso com formas constituídas de experiência, de libertação pessoal para a invenção de novas formas de vida (ou para ser mais certeiro, uma estética da auto-invenção).

Oiticica nos leva a pensar que a arte contemporânea traz em si mesma as fontes de todas as artes, que toda obra anterior nada mais é do que uma antecipação alegórica daquela. Com o objetivo de superar a distância entre arte e vida, propõe a experiência como eixo condutor do ato artístico. O objetivo é tirar o indivíduo da atitude meramente contemplativa e submergi-lo na sensibilidade ativa. Destruindo o consumidor pequeno-burguês da cultura, o homem da cultura asséptica, com sua tagarelice ociosa (séculos de interpretação), o indivíduo será levado à fonte irrepresentável ou não discursiva da experiência.

O interesse de Oiticica, ao criar o Parangolé, não foi outro senão o de levar o indivíduo ao dilatamento de suas capacidades artísticas, para a descoberta de seu centro interior criativo, de sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano. E, termino aqui, com as palavras de Bergson, que sintetizam a experiência Parangolé: "Ao libertar e acentuar esta música, eles hão de impô-la à nossa atenção; farão com que venhamos a inserir-nos nela, como passantes que entram numa dança. E por aí impelir-nos-ão a vibrar nas profundezas de nosso ser, algo que só estava esperando o momento de vibrar".

Para saber mais:

FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992.

CATÁLOGO: Hélio Oiticica. Centro de Arte Hélio Oiticia. Rio de Janeiro; Galerie nationele du Jeu de Paume, Paris.

OITICICA, Hélio Oiticia & CLARCK, Lygia. Cartas: 1964-74. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1898.

OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

JUSTINO, José Maria. Seja Marginal, Seja Herói: modernidade e pós-modernidade em Hélio Oiticia. Curitiba: Ed. da UFPR, 1998.

SALOMÃO, Wally. Hélio Oiticia: qual é o parangolé. Rio de Janeiro: relume-Dumará, 1996.



Jardel Dias Cavalcanti 
Campinas, 17/12/2002
http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=856&titulo=Parangole:_anti-obra_de_Helio_Oiticica