O pensador do século XXI
Por Glauco Faria e Nicolau Soares
O educador Carlos Alberto Torres era um estudante de graduação da Universidade da Patagônia pouco antes do golpe militar argentino, em 24 de março de 1976. À época, finalizava um livro sobre Paulo Freire e, munido de três cópias datilografadas, pegou um avião para Buenos Aires e entregou a obra para o editor Júlio Barreiro, que havia se comprometido a publicá-la.
Chegando lá, Júlio o cumprimentou em seu escritório com afeição, pegou o material e disse a Torres: “Vou lê-los com olhos de editor, mas tenho medo de que não poderei publicá-lo na Argentina nestas condições. Talvez nós possamos publicá-lo na Itália”.
A sentença foi um balde de água fria para o jovem educador. Muitas horas tinham sido gastas para produzir o livro em uma velha casa sem eletricidade no povoado de Trevelin, a 26 quilômetros da cidade argentina de Esquel.
Julio perguntou a Torres o que ele fazia na Patagônia e, ao saber que estava ministrando cursos em escolas e em uma universidade usando textos de Freire, Karl Marx e Jean Piaget, o interrompeu com um tom de voz preocupada: “Carlos, você precisa retornar imediatamente, pedir os programas de seus cursos, destruí-los e trocá-los por outros com bibliografias diferentes, que não incluam Piaget, Freire ou Marx. O governo está inspecionando estabelecimentos educacionais e, como estes autores foram banidos, podem haver conseqüências muito graves para aqueles que os ensinarem.”
Mesmo assim, Torres não se impressionou. “Em minha ingenuidade, perguntei a ele por que a situação lhe parecia tão difícil”, conta. Julio abriu a gaveta de sua escrivaninha e tirou de dentro uma revista muito popular na classe média. Havia duas páginas inteiras no meio com uma reportagem falando de Paulo Freire. A página da esquerda continha trechos tirados de Educação como Prática de Liberdade, a da direita passagens de Pedagogia do Oprimido. “Eram algumas das sentenças mais incendiárias dos dois livros, deslocadas totalmente do contexto original”, recorda Torres.
Ao fim da matéria, a sentença que resumia tudo: “a Revolução Argentina foi feita contra este tipo de educação marxista para nossas crianças”. Julio fechou a revista, olhou para Torres diretamente nos olhos e explicou que era preciso ser muito cuidadoso naquele tempo em particular. “Esta conversa mudou minha vida e talvez tenha salvado a mim e à minha família de um futuro de tortura ou morte certa”, conta.
A história acima não ocorreu apenas na Argentina. Ela se refletiu também no Brasil e em diversos países onde o pendor autoritário não permitia que Paulo Freire fosse sequer lido, quanto mais publicado. Não à toa, todos aqueles que comandavam regimes autoritários percebiam nele o potencial revolucionário que de fato sua obra tentava traduzir não somente por um método de ensino, mas utilizando-se de uma nova teoria do conhecimento que subvertia boa parte da tradição filosófica ocidental.
“Estou tentando fazer o Paulo Freire entrar mais na universidade, mostrando que ele era uma pensador rigoroso, não apenas intuitivo, sem rigor científico. Ele contrariou a ontologia aristotélica, toda nossa teoria do ser, a tradição ocidental, que diz que tudo o que existe é uma estrutura”, explica o professor José Eustáquio Romão, estudioso da obra freireana e que também conviveu com Paulo Freire entre 1986 e 1997. “Não existe o ‘ser’, mas sim o ‘está sendo’. Segundo Paulo, todos somos incompletos, já que precisamos uns dos outros; inconclusos, já que estamos em transformação; e inacabados, ou seja, imperfeitos”, argumenta.
Romão explica que o cerne do pensamento freireano está justamente na insatisfação que move o ser humano para o “ser mais”. “Aristóteles dizia que o que diferencia o ser humano dos outros seres é o raciocínio. Paulo Freire olhava pro cachorro dele e dizia ‘não tenho certeza se esse cachorro não pensa. Mas sei o que sou e fico insatisfeito por ser assim, por isso me esforço para não ser o que sou. Já o cachorro não faz esse esforço’”, analisa. “Não é à toa que ele desenvolve uma teoria do ser, que é a pedagogia do oprimido, e a teoria do ser mais, a pedagogia da esperança. O que diferencia o ser humano é a capacidade ter esperança, de ‘esperançar’”, conclui.
Romão conta que a primeira obra que leu de Freire sequer havia sido publicada, era o texto escrito para um concurso de professor na Faculdade de Belas Artes do Recife, publicado após sua morte pelo próprio Romão. Educação e atualidade brasileira tinha, na nota de rodapé 14, uma crítica pontual ao pensamento vigente à época na intelectualidade brasileira.
“Os grandes autores à época, principalmente o pessoal do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, diziam que o Brasil era subdesenvolvido, mas havia chegado a hora da virada, motivada pelo projeto nacional-desenvolvimentista. De acordo com eles, o contexto era favorável à revolução”, elucida Romão. A tese de Paulo Freire era de que, naquele momento, o povo emergia na arena política, uma relativa novidade para um país com a tradição autoritária do Brasil. Mas, ao mesmo tempo, Freire dizia que a revolução não seria possível, “porque não adiantava o cavalo estar arriado, era preciso montá-lo”, segundo o professor. “Ou seja, era preciso um processo de educação popular, um processo pedagógico. Ele fez algo extremamente marxista, existia a tese, a antítese, mas ainda não a síntese. Os intelectuais tinham parado na antítese. Aquilo era um projeto populista, tinha um limite estrutural nele mesmo.”
Em todo lugar A teoria freireana se estende não apenas por inúmeras áreas do conhecimento humano, mas também por diversos países que têm realidades totalmente diferentes. Foram dezenas de livros publicados em mais de 30 idiomas e outros 40 títulos honoris causa. Seu nome está relacionado a mais de cem instituições em todo o planeta.
Nos Estados Unidos, Paulo Freire é inspiração para educadores, mas também se firmou como referência política, influenciando no campo de atuação da esquerda norte-americana. “Ele sempre foi conhecido aqui como revolucionário em educação de adultos nos anos 1970 e no início dos 1980”, explica Carlos Alberto Torres, o jovem do início do texto, hoje radicado nos EUA. “Entretanto, com sua introdução em programas de treinamento de professores nos Estados Unidos, Freire foi rapidamente colocado como um ‘guru’ da Nova Esquerda nos EUA e também internacionalmente. Seu trabalho transcende o campo da educação e suas teorias são praticadas e aplicadas em diversos setores, particularmente aqueles ligados a políticas culturais”, pontua.
Boa parte do reconhecimento internacional que Freire granjeou decorre de um verdadeiro trabalho militante. Foram centenas de viagens feitas por ele durante toda sua vida e muitos daqueles que hoje divulgam suas teorias e práticas as conheceram por meio do próprio educador. É o caso de Daniel Schugurensky, professor associado do Instituto Ontario para Estudos em Educação da Universidade de Toronto. “Eu era muito interessado nas idéias de Freire desde que era um adolescente porque naquele tempo estava ansioso para encontrar caminhos que contribuíssem para uma mudança social através da educação”, explica. “Aqui, Freire é muito conhecido. Ele passou parte do verão de 1976 ministrando um curso de pós-graduação e desta passagem temos três vídeos nos quais dois educadores de adultos de nosso instituto o entrevistam. No ano seguinte da sua visita a Toronto, um grupo local ligado a sindicatos progressistas começou a realizar uma série de atividades de educação popular”, recorda. Ele ressalta que o legado freireano é significativo em seu país. “Não apenas eu, mas muitos de meus colegas aqui tratamos de aplicar os princípios freireanos a nossa prática pedagógica e política em nossas atividades cotidianas, em nossa relação com nossos estudantes, com nossas comunidades, e em nossa própria organização interna, tratando de ser cada vez mais democráticos e criar estruturas mais democráticas. Também há professores aplicando princípios freireanos em escolas secundárias do Canadá”.
Mas em países onde a realidade é menos rósea do que no Canadá, as teses do educador adquirem um outro tipo de importância. Deena Soliar é uma das dirigentes do Centro Umtapo da África do Sul, um dos muitos países visitados por ele no continente, e conta como as sua teoria chegou ao país. “Ele foi introduzido na África do Sul no início dos anos 1970 por Anne Hope, que conduziu o primeiro treinamento baseado na filosofia de Freire para um grupo de ativistas da Consciência Negra, incluindo Steve Biko. Já estávamos convencidos que conscientização através da educação popular era a chave para os problemas do país e dessa forma um dos pilares fundamentais da fundação da Umtapo foi a filosofia freireana”, explica.
Assim como em outros locais, na África do Sul a área da educação também é um campo em que se travam disputas políticas, com diferentes concepções a respeito do papel da educação. Deena e a Umtapo lutam para promover a educação popular e a aplicação da teoria freireana tem sido fundamental para o sucesso dessa empreitada. “Em 1991, a Umtapo fundou a Associação para Alfabetização e Educação de Adultos, afiliada à Associação Africana por Alfabetização e Educação de Adultos, em oposição a outras entidades dominadas por liberais no país que eram críticas de Freire. Agora temos tentado nos últimos anos estabelecer uma ampla coalizão internacional de educadores populares comprometidos com a filosofia e o método freireanos”, conta. A Umtapo também honrou Freire ao premiá-lo postumamente com o Prêmio Steve Biko da Paz Internacional em 2005 e produziu um manual de treinamento para jovens ativistas comunitários em seu nome.
A cultura da paz também foi influenciada pelo educador pernambucano. Davi Windholz foi um dos fundadores do Instituto Paulo Freire em Israel e começou a trabalhar em bairros pobres utilizando a teoria freireana em programas de desenvolvimento de lideranças sociais. “O programa era patrocinado pela Universidade de Jerusalém, e todo o trabalho baseava-se em formação de grupos de lideranças locais para a melhoria das condições de vida desses bairros”, explica. “Acreditávamos que não tínhamos o direito de ir a
esses bairros com uma postura de ‘donos da verdade’ como vinham os assistentes sociais, em geral. Nós, estudantes, e eles, moradores dos bairros pobres, vivíamos em dois mundos diferentes e sem contato. O diálogo era a única forma de poder unir esses dois mundos e achar um meio que pudesse nos libertar, juntos.”
Em um país onde o equilíbrio social é frágil e os conflitos são inúmeros, trabalhar com a filosofia freireana pode ser uma boa saída. “Apesar de todas as diferenças, o diálogo e a educação libertadora são as únicas formas positivas de influir nos processos sociais e educacionais que promovemos”, acredita Windholz, que hoje trabalha com o projeto AlterNative, que busca promover o poder comunitário e a integração étnica.
Música e alternância Além de estar presente em vários lugares com realidades absolutamente distintas, Paulo Freire também se faz presente em diferentes áreas do conhecimento humano, inclusive na música. A dissertação de mestrado de Estevão Teixeira foi sobre alfabetização musical utilizando a teoria freireana, com a intenção de valorizar a cultura popular e rema contra a educação musical tradicional. “Sou professor em conservatório e percebi que quem tem aula ali, aprende por quinze, vinte anos, e não toca nada sem partitura”, conta. “Os músicos populares são considerados analfabetos musicais e, embora Paulo Freire tenha dito que não basta ler, mas é preciso ler dentro do contexto, existe aí uma dominação simbólica. Sempre houve muita ênfase na música erudita e boa parte dos professores não deixa tocar de ouvido”, critica.
Assim, Teixeira desenvolveu o Teclado Didático para o Ensino da Música (Tedem), que ele define como um “ábaco musical”. Trata-se de um teclado onde as teclas se levantam do plano horizontal, possibilitando uma maior compreensão de todas as estruturas musicais. “É um método que não se volta somente à alfabetização musical, mas voltado à formação da criança”, assegura. Em 2004, Estevão lutou para que fosse aprovada em Juiz de Fora (MG) a Lei Municipal (nº 10.861), com o objetivo de reinserir o ensino da música nas escolas públicas da rede municipal de ensino fundamental.
A teoria freireana chega também ao campo. Na cidade baiana de Jaguaquara, a Escola Rural Taylor Egídio trabalha com 600 alunos num regime de internato, mas com uma proposta de pedagogia de alternância. Enquanto 300 crianças estão na escola, 300 estão em suas casas e são visitadas diariamente. “A idéia da alternância é uma imersão na educação formal sem tirar a criança de sua realidade. Ela transita entre educação formal e a vida de sua casa. O grande objetivo é fortalecer o campo, o saber local. Pretendemos que as crianças voltem para a roça e coloquem em prática nos seus quintais, nas plantações dos pais, o que aprenderam na escola, e que possam ensinar para os pais”, esclarece Sonilda Sampaio Santos Pereira, diretora da escola.
“Na sala de aula, é proposto para os alunos uma construção de conhecimento a partir da realidade de cada uma, do concreto das vidas”, explica Sonilda, ressaltando a interdisciplinariedade presente no cotidiano da escola. “Juntamente com a construção da leitura, especialmente da leitura mundo e da palavra escrita, tratamos também a música. Temos uma banda, trabalhamos a questão da voz, informática, fazemos tarefas com Lego. Mas o eixo de todas as práticas é o campo, que é muito explorado nas aulas de agricultura.”
Mas de fato o que mais impressiona na teoria freireana, além da sua atualidade, é a capacidade de se reinventar, mesmo dez anos após sua morte. Ao contrário de outros intelectuais, à medida que o tempo passa, Paulo Freire é ainda mais reconhecido pela amplitude de sua obra. “Reconhecemos Freire como um dos grandes educadores do século XX e sempre revisamos sua obra e revisitamos suas contribuições à educação para entender os mecanismos de reprodução social e mudança”, conta Daniel Schugurensky. “Ao mesmo tempo, Freire sempre pediu que não o copiássemos, mas que o reinventássemos, e, aqui em Toronto, estamos colaborando com os esforços que estão sendo feitos no Brasil e em outras partes do mundo para reinventar Freire e nos preparar para os desafios do século XXI”, completa.
Reinvenção é o termo que Carlos Alberto Torres também usa para explicar o que se desenvolve hoje na Universidade da Califórnia (UCLA). “O Instituto Paulo Freire na UCLA está desenvolvendo séries de cursos de treinamento profissional para professores do fundamental e do ensino médio em colaboração com o Programa de Educação de Professores da UCLA. O propósito destes cursos é guiar professores por aplicações teóricas e práticas da pedagogia crítica de Paulo Freire em classes urbanas e multiculturais”, aponta. “O objeto deste cursos não é apenas a aplicação de contribuições de Paulo Freire e de seus seguidores, mas sua reinvenção. A idéia é ligar pesquisa, teoria e prática em um caminho único, que vai permitir a educadores jovens e treinados nas universidade a ensinar seus estudantes, muitos deles filhos de imigrantes recentes a entender e navegar nas complexas e muitas vezes violentas comunidades em que eles vivem. De forma crítica e com compaixão ao mesmo”, conclui.
Para José Eustáquio Romão, o grande legado de Paulo Freire pode ter um significado para a área das Ciências Humanas que equivale a de outros grandes pensadores do século XX. “Charles Darwin, Sigmund Freud e Karl Marx tiveram que criar teorias de conhecimento para explicar o que não podiam por conta das circunstâncias históricas, não acharam elementos disponíveis que pudessem auxiliá-los. Creio que a teoria criada por Freire ainda será a grande teoria do século XXI”. Alguém tem dúvidas?
Chegando lá, Júlio o cumprimentou em seu escritório com afeição, pegou o material e disse a Torres: “Vou lê-los com olhos de editor, mas tenho medo de que não poderei publicá-lo na Argentina nestas condições. Talvez nós possamos publicá-lo na Itália”.
A sentença foi um balde de água fria para o jovem educador. Muitas horas tinham sido gastas para produzir o livro em uma velha casa sem eletricidade no povoado de Trevelin, a 26 quilômetros da cidade argentina de Esquel.
Julio perguntou a Torres o que ele fazia na Patagônia e, ao saber que estava ministrando cursos em escolas e em uma universidade usando textos de Freire, Karl Marx e Jean Piaget, o interrompeu com um tom de voz preocupada: “Carlos, você precisa retornar imediatamente, pedir os programas de seus cursos, destruí-los e trocá-los por outros com bibliografias diferentes, que não incluam Piaget, Freire ou Marx. O governo está inspecionando estabelecimentos educacionais e, como estes autores foram banidos, podem haver conseqüências muito graves para aqueles que os ensinarem.”
Mesmo assim, Torres não se impressionou. “Em minha ingenuidade, perguntei a ele por que a situação lhe parecia tão difícil”, conta. Julio abriu a gaveta de sua escrivaninha e tirou de dentro uma revista muito popular na classe média. Havia duas páginas inteiras no meio com uma reportagem falando de Paulo Freire. A página da esquerda continha trechos tirados de Educação como Prática de Liberdade, a da direita passagens de Pedagogia do Oprimido. “Eram algumas das sentenças mais incendiárias dos dois livros, deslocadas totalmente do contexto original”, recorda Torres.
Ao fim da matéria, a sentença que resumia tudo: “a Revolução Argentina foi feita contra este tipo de educação marxista para nossas crianças”. Julio fechou a revista, olhou para Torres diretamente nos olhos e explicou que era preciso ser muito cuidadoso naquele tempo em particular. “Esta conversa mudou minha vida e talvez tenha salvado a mim e à minha família de um futuro de tortura ou morte certa”, conta.
A história acima não ocorreu apenas na Argentina. Ela se refletiu também no Brasil e em diversos países onde o pendor autoritário não permitia que Paulo Freire fosse sequer lido, quanto mais publicado. Não à toa, todos aqueles que comandavam regimes autoritários percebiam nele o potencial revolucionário que de fato sua obra tentava traduzir não somente por um método de ensino, mas utilizando-se de uma nova teoria do conhecimento que subvertia boa parte da tradição filosófica ocidental.
“Estou tentando fazer o Paulo Freire entrar mais na universidade, mostrando que ele era uma pensador rigoroso, não apenas intuitivo, sem rigor científico. Ele contrariou a ontologia aristotélica, toda nossa teoria do ser, a tradição ocidental, que diz que tudo o que existe é uma estrutura”, explica o professor José Eustáquio Romão, estudioso da obra freireana e que também conviveu com Paulo Freire entre 1986 e 1997. “Não existe o ‘ser’, mas sim o ‘está sendo’. Segundo Paulo, todos somos incompletos, já que precisamos uns dos outros; inconclusos, já que estamos em transformação; e inacabados, ou seja, imperfeitos”, argumenta.
Romão explica que o cerne do pensamento freireano está justamente na insatisfação que move o ser humano para o “ser mais”. “Aristóteles dizia que o que diferencia o ser humano dos outros seres é o raciocínio. Paulo Freire olhava pro cachorro dele e dizia ‘não tenho certeza se esse cachorro não pensa. Mas sei o que sou e fico insatisfeito por ser assim, por isso me esforço para não ser o que sou. Já o cachorro não faz esse esforço’”, analisa. “Não é à toa que ele desenvolve uma teoria do ser, que é a pedagogia do oprimido, e a teoria do ser mais, a pedagogia da esperança. O que diferencia o ser humano é a capacidade ter esperança, de ‘esperançar’”, conclui.
Romão conta que a primeira obra que leu de Freire sequer havia sido publicada, era o texto escrito para um concurso de professor na Faculdade de Belas Artes do Recife, publicado após sua morte pelo próprio Romão. Educação e atualidade brasileira tinha, na nota de rodapé 14, uma crítica pontual ao pensamento vigente à época na intelectualidade brasileira.
“Os grandes autores à época, principalmente o pessoal do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, diziam que o Brasil era subdesenvolvido, mas havia chegado a hora da virada, motivada pelo projeto nacional-desenvolvimentista. De acordo com eles, o contexto era favorável à revolução”, elucida Romão. A tese de Paulo Freire era de que, naquele momento, o povo emergia na arena política, uma relativa novidade para um país com a tradição autoritária do Brasil. Mas, ao mesmo tempo, Freire dizia que a revolução não seria possível, “porque não adiantava o cavalo estar arriado, era preciso montá-lo”, segundo o professor. “Ou seja, era preciso um processo de educação popular, um processo pedagógico. Ele fez algo extremamente marxista, existia a tese, a antítese, mas ainda não a síntese. Os intelectuais tinham parado na antítese. Aquilo era um projeto populista, tinha um limite estrutural nele mesmo.”
Em todo lugar A teoria freireana se estende não apenas por inúmeras áreas do conhecimento humano, mas também por diversos países que têm realidades totalmente diferentes. Foram dezenas de livros publicados em mais de 30 idiomas e outros 40 títulos honoris causa. Seu nome está relacionado a mais de cem instituições em todo o planeta.
Nos Estados Unidos, Paulo Freire é inspiração para educadores, mas também se firmou como referência política, influenciando no campo de atuação da esquerda norte-americana. “Ele sempre foi conhecido aqui como revolucionário em educação de adultos nos anos 1970 e no início dos 1980”, explica Carlos Alberto Torres, o jovem do início do texto, hoje radicado nos EUA. “Entretanto, com sua introdução em programas de treinamento de professores nos Estados Unidos, Freire foi rapidamente colocado como um ‘guru’ da Nova Esquerda nos EUA e também internacionalmente. Seu trabalho transcende o campo da educação e suas teorias são praticadas e aplicadas em diversos setores, particularmente aqueles ligados a políticas culturais”, pontua.
Boa parte do reconhecimento internacional que Freire granjeou decorre de um verdadeiro trabalho militante. Foram centenas de viagens feitas por ele durante toda sua vida e muitos daqueles que hoje divulgam suas teorias e práticas as conheceram por meio do próprio educador. É o caso de Daniel Schugurensky, professor associado do Instituto Ontario para Estudos em Educação da Universidade de Toronto. “Eu era muito interessado nas idéias de Freire desde que era um adolescente porque naquele tempo estava ansioso para encontrar caminhos que contribuíssem para uma mudança social através da educação”, explica. “Aqui, Freire é muito conhecido. Ele passou parte do verão de 1976 ministrando um curso de pós-graduação e desta passagem temos três vídeos nos quais dois educadores de adultos de nosso instituto o entrevistam. No ano seguinte da sua visita a Toronto, um grupo local ligado a sindicatos progressistas começou a realizar uma série de atividades de educação popular”, recorda. Ele ressalta que o legado freireano é significativo em seu país. “Não apenas eu, mas muitos de meus colegas aqui tratamos de aplicar os princípios freireanos a nossa prática pedagógica e política em nossas atividades cotidianas, em nossa relação com nossos estudantes, com nossas comunidades, e em nossa própria organização interna, tratando de ser cada vez mais democráticos e criar estruturas mais democráticas. Também há professores aplicando princípios freireanos em escolas secundárias do Canadá”.
Mas em países onde a realidade é menos rósea do que no Canadá, as teses do educador adquirem um outro tipo de importância. Deena Soliar é uma das dirigentes do Centro Umtapo da África do Sul, um dos muitos países visitados por ele no continente, e conta como as sua teoria chegou ao país. “Ele foi introduzido na África do Sul no início dos anos 1970 por Anne Hope, que conduziu o primeiro treinamento baseado na filosofia de Freire para um grupo de ativistas da Consciência Negra, incluindo Steve Biko. Já estávamos convencidos que conscientização através da educação popular era a chave para os problemas do país e dessa forma um dos pilares fundamentais da fundação da Umtapo foi a filosofia freireana”, explica.
Assim como em outros locais, na África do Sul a área da educação também é um campo em que se travam disputas políticas, com diferentes concepções a respeito do papel da educação. Deena e a Umtapo lutam para promover a educação popular e a aplicação da teoria freireana tem sido fundamental para o sucesso dessa empreitada. “Em 1991, a Umtapo fundou a Associação para Alfabetização e Educação de Adultos, afiliada à Associação Africana por Alfabetização e Educação de Adultos, em oposição a outras entidades dominadas por liberais no país que eram críticas de Freire. Agora temos tentado nos últimos anos estabelecer uma ampla coalizão internacional de educadores populares comprometidos com a filosofia e o método freireanos”, conta. A Umtapo também honrou Freire ao premiá-lo postumamente com o Prêmio Steve Biko da Paz Internacional em 2005 e produziu um manual de treinamento para jovens ativistas comunitários em seu nome.
A cultura da paz também foi influenciada pelo educador pernambucano. Davi Windholz foi um dos fundadores do Instituto Paulo Freire em Israel e começou a trabalhar em bairros pobres utilizando a teoria freireana em programas de desenvolvimento de lideranças sociais. “O programa era patrocinado pela Universidade de Jerusalém, e todo o trabalho baseava-se em formação de grupos de lideranças locais para a melhoria das condições de vida desses bairros”, explica. “Acreditávamos que não tínhamos o direito de ir a
esses bairros com uma postura de ‘donos da verdade’ como vinham os assistentes sociais, em geral. Nós, estudantes, e eles, moradores dos bairros pobres, vivíamos em dois mundos diferentes e sem contato. O diálogo era a única forma de poder unir esses dois mundos e achar um meio que pudesse nos libertar, juntos.”
Em um país onde o equilíbrio social é frágil e os conflitos são inúmeros, trabalhar com a filosofia freireana pode ser uma boa saída. “Apesar de todas as diferenças, o diálogo e a educação libertadora são as únicas formas positivas de influir nos processos sociais e educacionais que promovemos”, acredita Windholz, que hoje trabalha com o projeto AlterNative, que busca promover o poder comunitário e a integração étnica.
Música e alternância Além de estar presente em vários lugares com realidades absolutamente distintas, Paulo Freire também se faz presente em diferentes áreas do conhecimento humano, inclusive na música. A dissertação de mestrado de Estevão Teixeira foi sobre alfabetização musical utilizando a teoria freireana, com a intenção de valorizar a cultura popular e rema contra a educação musical tradicional. “Sou professor em conservatório e percebi que quem tem aula ali, aprende por quinze, vinte anos, e não toca nada sem partitura”, conta. “Os músicos populares são considerados analfabetos musicais e, embora Paulo Freire tenha dito que não basta ler, mas é preciso ler dentro do contexto, existe aí uma dominação simbólica. Sempre houve muita ênfase na música erudita e boa parte dos professores não deixa tocar de ouvido”, critica.
Assim, Teixeira desenvolveu o Teclado Didático para o Ensino da Música (Tedem), que ele define como um “ábaco musical”. Trata-se de um teclado onde as teclas se levantam do plano horizontal, possibilitando uma maior compreensão de todas as estruturas musicais. “É um método que não se volta somente à alfabetização musical, mas voltado à formação da criança”, assegura. Em 2004, Estevão lutou para que fosse aprovada em Juiz de Fora (MG) a Lei Municipal (nº 10.861), com o objetivo de reinserir o ensino da música nas escolas públicas da rede municipal de ensino fundamental.
A teoria freireana chega também ao campo. Na cidade baiana de Jaguaquara, a Escola Rural Taylor Egídio trabalha com 600 alunos num regime de internato, mas com uma proposta de pedagogia de alternância. Enquanto 300 crianças estão na escola, 300 estão em suas casas e são visitadas diariamente. “A idéia da alternância é uma imersão na educação formal sem tirar a criança de sua realidade. Ela transita entre educação formal e a vida de sua casa. O grande objetivo é fortalecer o campo, o saber local. Pretendemos que as crianças voltem para a roça e coloquem em prática nos seus quintais, nas plantações dos pais, o que aprenderam na escola, e que possam ensinar para os pais”, esclarece Sonilda Sampaio Santos Pereira, diretora da escola.
“Na sala de aula, é proposto para os alunos uma construção de conhecimento a partir da realidade de cada uma, do concreto das vidas”, explica Sonilda, ressaltando a interdisciplinariedade presente no cotidiano da escola. “Juntamente com a construção da leitura, especialmente da leitura mundo e da palavra escrita, tratamos também a música. Temos uma banda, trabalhamos a questão da voz, informática, fazemos tarefas com Lego. Mas o eixo de todas as práticas é o campo, que é muito explorado nas aulas de agricultura.”
Mas de fato o que mais impressiona na teoria freireana, além da sua atualidade, é a capacidade de se reinventar, mesmo dez anos após sua morte. Ao contrário de outros intelectuais, à medida que o tempo passa, Paulo Freire é ainda mais reconhecido pela amplitude de sua obra. “Reconhecemos Freire como um dos grandes educadores do século XX e sempre revisamos sua obra e revisitamos suas contribuições à educação para entender os mecanismos de reprodução social e mudança”, conta Daniel Schugurensky. “Ao mesmo tempo, Freire sempre pediu que não o copiássemos, mas que o reinventássemos, e, aqui em Toronto, estamos colaborando com os esforços que estão sendo feitos no Brasil e em outras partes do mundo para reinventar Freire e nos preparar para os desafios do século XXI”, completa.
Reinvenção é o termo que Carlos Alberto Torres também usa para explicar o que se desenvolve hoje na Universidade da Califórnia (UCLA). “O Instituto Paulo Freire na UCLA está desenvolvendo séries de cursos de treinamento profissional para professores do fundamental e do ensino médio em colaboração com o Programa de Educação de Professores da UCLA. O propósito destes cursos é guiar professores por aplicações teóricas e práticas da pedagogia crítica de Paulo Freire em classes urbanas e multiculturais”, aponta. “O objeto deste cursos não é apenas a aplicação de contribuições de Paulo Freire e de seus seguidores, mas sua reinvenção. A idéia é ligar pesquisa, teoria e prática em um caminho único, que vai permitir a educadores jovens e treinados nas universidade a ensinar seus estudantes, muitos deles filhos de imigrantes recentes a entender e navegar nas complexas e muitas vezes violentas comunidades em que eles vivem. De forma crítica e com compaixão ao mesmo”, conclui.
Para José Eustáquio Romão, o grande legado de Paulo Freire pode ter um significado para a área das Ciências Humanas que equivale a de outros grandes pensadores do século XX. “Charles Darwin, Sigmund Freud e Karl Marx tiveram que criar teorias de conhecimento para explicar o que não podiam por conta das circunstâncias históricas, não acharam elementos disponíveis que pudessem auxiliá-los. Creio que a teoria criada por Freire ainda será a grande teoria do século XXI”. Alguém tem dúvidas?
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