Domingo de Circo
Toda tua chegada nessa radiosa manhã de domingo embandeirada de infância. Solene e festivo circo armado no terreno baldio do meu coração.
As piruetas do palhaço são malabaristas alegrias na vertigem de não saber o que faço.
Rugem feras em meu sangue; cortam-me espadas de fogo.
Motos loucas de globo da morte, rufar de tambores nas entranhas, anúncio espanholado de espetáculo, fazem de tua chegada minha sorte.
Domingo redondo aberto picadeiro, ensolarado por tão forte ardor, me refunde queima alucina:
olhos vendados,
sem rede sobre o chão,
atiro-me do trapézio
em teu amor.
Do livro A Arte de Semear Estrelas, de Frei Betto.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Cuba: dedo em uma chaga



Cuba: dedo em uma chaga

Por Leonardo Padura Fuentes, de Havana*
As mudanças econômicas e sociais já empreendidas em Cuba e as que serão implantadas em um futuro próximo sob a premissa da atualização necessária e aperfeiçoamento do modelo econômico cubano têm entre seus objetivos expressos uma descentralização do Estado e um desencargo de responsabilidades insustentáveis para essa estrutura.
Esse processo, que permitirá maior independência não só às empresas, aos governos locais e às opções de trabalho dos indivíduos, traz aparelhada uma importante modificação das estruturas sociais cubanas, não só no plano econômico, mas em todas as suas esferas de existência.
Muito se insistiu na necessidade de que o Estado assuma menos responsabilidades que não tem razão para carregar (embora tenha sido decisão sua assumi-las na época, como parte do “modelo” escolhido) e na impossibilidade de manter subsídios, gratuidades e benefícios que até poucos anos atrás o próprio Estado gerou e promoveu.
Muito, também, na necessidade da contribuição dos cidadãos para o sustento desse mesmo Estado, mediante uma produtividade trabalhista adequada e através de impostos diretos (inclusive os destinados à previdência social e, portanto, a esferas como a saúde e a educação). Pouco se falou, por outro lado, nos conflitos individuais que as medidas tomadas e ainda a tomar trarão aos cidadãos, embora, certamente, se tenha reiterado a máxima de que nenhuma pessoa ficará desamparada se precisar da ajuda estatal.
Quando se fala da necessidade de eliminar subsídios, não se menciona, em contrapartida, a possibilidade de reduzir os encargos que, durante os últimos 15 anos, ajudaram no sustento do Estado e na sua possibilidade de conceder subsídios, como são os impostos aplicados sobre os produtos revendidos pelas lojas arrecadadoras de divisas, cujos preços devem duplicar, triplicar e até quatriplicar em relação aos que esses mesmos produtos têm na rede varejista de outros países. Esses preços tão duramente tributados, decerto, são os que regulam os do resto dos mercados (com a exceção dos produtos vendidos pela esquálida e moribunda caderneta de abastecimento) e até os do mercado negro que funciona no país e são os que, em conjunto, fazem com que os salários estatais sejam mais que insuficientes para o sustento do trabalhador e sua familia – o que provocou, entre outros efeitos, o desinteresse pelo trabalho.
Geração escondida
Entre o já comentado houve, entretanto, um silêncio total em relação aos efeitos que tais mudanças e redefinições trarão para o setor das pessoas que, sem chegar à idade de aposentadoria, mas já passada a juventude, deverão refazer suas vidas em novas condições sociais e econômicas nas quais o Estado aspira a obter uma parte maior de seu sustento do trabalho dos cidadãos sem que se mantenham as políticas protecionistas ou paternalistas imperantes no país por décadas.
Esse grupo de pessoas forma a geração que hoje anda entre os 45 e os 55 anos e que é muito definível em Cuba por várias características, entre as quais me ocorre contar o fato de ter sido a primeira que, maciçamente, cursou estudos universitários (e são, portanto, profissionais); é a que, essencialmente, participou das missões militares internacionais dos anos 1970 e 1980, sem terem recebido os benefícios econômicos dos atuais trabalhadores no exterior; foi a que, por volta dos 30 anos, ou seja, em sua etapa de maturidade intelectual e profissional, assistiu à chegada do período especial e viu em muitos casos truncada ou alterada sua estrutura de ascensão econômica e social; e é em alguns casos para sua salvação – a que engendrou a geração de jovens que nos últimos anos emigraram de Cuba ou estão emigrando agora, jovens com capacidade intelectual ou força física para tentar e muitas vezes conseguir – uma inserção satisfatória em outras sociedades, de onde contribuem para o sustento de seus parentes na ilha.
Quantos dos indivíduos pertencentes a essa geração entre os 45 e os 55 anos, mais ou menos, estão em condições físicas e psicológicas para “reciclar-se” no novo modelo econômico em gestação? Quantos podem converter-se em agricultores, operários de construção, policiais ou trabalhadores autônomos, levando em conta sua idade e capacidade? Além do trabalho como professores, que outra alternativa o Estado pode oferecer a muitos deles?
Em alguns dos romances que escrevi, chamo esse setor específico da população cubana de “geração escondida”, por sua proverbial falta de rosto público e de capacidade para decidir suas opções de vida e futuro em uma sociedade que esteve ferrenhamente regulamentada e na qual seu papel foi muitas vezes decidido pelas necessidades, exigências e solicitações do Estado. Desde o estudo até a guerra, passando pelo corte de cana, a orientação profissional e um longo e variado leque de necessidades e obediências.
Essa é a geração que hoje deve tentar recolocar-se em um sistema que será necessariamente competitivo, no qual o Estado exigirá produtividade e impostos, ao qual chegam com seus conhecimentos em disputa com os conhecimentos, capacidades e força da geração que os sucede, e, dramaticamente, com a possibilidade da aposentadoria adiada em cinco anos graças a uma mudança recente na legislação.
Nova guerra
Não há dúvida de que o desafio que este setor da população cubana deve enfrentar é árduo, em uma medida ainda difícil de estabelecer. As opções de trabalhar para o Estado serão reduzidas notavelmente e as possibilidades de fazê-lo em empresas mais ou menos autônomas ou de capital misto enfrentarão, mais que nunca, o peso da competitividade.
Os trabalhos por conta própria, entretanto, exigem habilidades e capacidades que muitas dessas pessoas não possuem e também funcionarão, mais adiante, com um alto grau de competitividade que assegure a eles a subsistência e o sucesso.
A conjuntura social e econômica que hoje espreita esta geração será sua nova guerra, seu novo corte de cana.
Mas a linguagem e a retórica que os acompanhará nesse empenho não será nem poderia ser a mesma, pois são outros os fins, outros os tempos, outras as expectativas. E porque o que se aproxima é um choque frontal com a realidade e sua expressão exigirá novas respostas… e não velhas palavras de ordem escutadas por tantos anos.
*Leonardo Padura Fuentes é escritor cubano. 

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