Na contramão da indústria cultural
Por Cristiane Toledo
No dia 22 de outubro, a abertura da 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo teve a exibição do último trabalho do cineasta inglês Ken Loach, À Procura de Eric, que desde sua estreia em Cannes vem recebendo muita atenção da crítica e do público em geral. Apesar de ser uma comédia e possuir um tom mais leve que outros filmes do cineasta, como Terra e Liberdade (1995), Pão e Rosas (2000) e Ventos da Liberdade (2006), o filme possui fortes relações com o restante de sua carreira, que sempre caminhou na contramão das regras estabelecidas pelo cinema hollywoodiano.
Segundo George McKnight, estudioso da obra do cineasta, “há uma singularidade no trabalho de Loach no decorrer de sua carreira, especialmente na análise política para a qual os filmes chamam nossa atenção, e uma diversidade nas formas através das quais ele tenta engajar essa atenção e nosso interesse político”.1
Em termos de conteúdo, podemos dizer que o diretor sempre foi famoso por filmes políticos e esquerdistas, nos quais os protagonistas são quase sempre trabalhadores. Porém, o que seus filmes têm de especial, quando comparados a outras produções do cinema político, é a forma como sua mensagem é transmitida.
Uma das características mais importantes do método de Ken Loach é a escolha do elenco de seus filmes. Muitos dos atores não são profissionais, e sim pessoas que se autorrepresentam, principalmente em seu cotidiano de trabalho. Para ele, se você escolhe uma estrela do cinema para interpretar um homem da classe trabalhadora, é como dizer que não existe uma pessoa da classe trabalhadora capaz de fazê-lo. Nas palavras do diretor, “Uma das coisas que tentamos fazer é dar dignidade e importância às pessoas comuns. Se tivéssemos um ator muito famoso no papel do protagonista, toda a discussão de classe teria sido ignorada ou tratada com condescendência. Teria sido perdida toda a qualidade básica que queríamos colocar na tela”. Seus filmes também são inteiramente falados no dialeto de seus personagens, marcando sua origem geográfica e sua classe social. E, dado que os atores são pessoas com o mesmo perfil do personagem, essa linguagem é a mais realista possível, não soando como uma caricatura que só ridicularizaria o grupo representado e não o permitiria se reconhecer de fato na tela.
Toda essa atitude está ligada ao seu projeto político de alcançar uma representação autêntica, flertando aqui com o documentário e com o realismo, mas não em suas formas tradicionais, apenas em sua ânsia pelo alcance de um “real”, de uma “verdade”. Para Loach, o ator deve participar de uma experiência, e não interpretar. É dessa forma que se alcança a autenticidade desejada, o que está acima da necessidade puramente estética da obra de arte “bem-feita”.
Ao fazer essa aliança entre ficção e documentário, entre arte e realidade, e entre estética e política, o diretor se coloca a certa distância do cinema comercial. Se nos identificamos com o protagonista, não é apenas porque ele é o herói no sentido tradicional do termo, e sim porque vivemos junto com ele um processo de aprendizagem, de conscientização e de luta. Se os filmes despertam emoções e lágrimas, estas são menos causadas por um efeito de manipulação, de truques de atuação e de música, do que o resultado da autenticidade no seu método de trabalho.
Diferentemente do cinema hollywoodiano, esse processo de identificação envolve não apenas a vida dos personagens mostrados em sua humanidade, mas também em relação com sua classe e sua luta política. O crítico John Hill menciona que o trabalho de Ken Loach “desencoraja uma identificação extremamente emocional com os personagens enquanto insiste nas relações das ações desses indivíduos com o processo econômico e social”.2 Mais do que uma identificação psicológica e mecanizada, existe aqui um processo de reconhecimento, que é de classe, e é através desse movimento que se consegue a aliança política desejada pelo diretor.
Além de se posicionar do lado dos oprimidos, por meio da escolha do roteiro e do posicionamento da câmera, as cenas de Ken Loach não são baseadas em abstrações de discursos esquerdistas, desconectadas das experiências cotidianas reais dos trabalhadores. Nas diversas cenas em que os trabalhadores discutem se devem ou não se afiliar a um sindicato, coletivizar terras etc., ouvimos argumentos genuínos de todos os tipos, e nenhum deles é desqualificado ou ridicularizado por uma teoria filosófica imposta pelo roteiro. Fazendo uso de improvisações, os atores e não atores fazem uma discussão na qual aparecem ao mesmo tempo seus medos reais, as oscilações e angústias de perder o pouco que têm para sobreviver e a vontade de melhorar suas vidas. A reflexão não é imposta à experiência real, mas emana da mesma. Segundo o diretor, “O processo didático do filme precisa ser feito através dos personagens que estão na história. Não se pode transmitir uma mensagem que não seja através das pessoas, porque, no fim das contas, seja um conflito político, uma guerra ou uma revolução, são as pessoas que os vivem e que são afetadas por eles”.
Em geral, a crítica de esquerda acusa seus filmes de serem ultrapassados ao focarem na classe trabalhadora como sujeito histórico deste novo século. Para Ken Loach, no entanto, representar apenas vitórias ou somente derrotas não é uma boa estratégia política. “É preciso fazer algo mais do que dizer ‘é assim que as coisas são’. De alguma maneira, é preciso indicar que ‘é assim que as coisas poderiam ser’”. A aposta de Ken Loach, contudo, não é em toda e qualquer vitória do oprimido em relação ao opressor. “Enquanto indivíduos”, ele diz, “não somos nada. Coletivamente, no entanto, somos tudo. Atos individuais não funcionam, é preciso estar organizado”.
Se Loach acerta ou não aqui, é difícil responder. O que podemos ver, ao menos, é que, em meio a uma era de cinismo neoliberal, a uma crise dos valores da esquerda e, mesmo dentro da própria esquerda a presença de teorias que menosprezam o potencial da arte política ou negam a possibilidade de uma revolução feita pela classe trabalhadora após a derrocada da União Soviética, Ken Loach parece cada vez mais ser uma voz dissidente.“As pessoas sempre lutam e é esse o tipo de coisas que nos dá esperança. Espero que nós indiquemos isso nos filmes. É sempre uma situação dinâmica. A coisa mais deprimente é o slogan político de que ‘não há alternativas’. Mas há. A História não terminou”. 3
“O cinema não é um agente de mudanças, mas de reafirmação do status quo” Fórum – No Brasil, seus filmes não são muito distribuídos e quem costuma conhecer sua obra são em geral intelectuais de esquerda. E na Europa, quem são as pessoas que veem seus filmes?
Ken Loach – Isso varia muito. Na França e na Itália é um público mais popular, muito maior do que no Reino Unido. Em meu país, em geral são pessoas que acompanham o cinema de arte. Mas nós fazemos exibições para sindicatos, grupos políticos e estudantes, então os filmes são muito usados fora do cinema, e para isso os DVDs têm sido muito úteis porque podemos organizar exibições seguidas de debate.
Fórum – O que os trabalhadores em geral pensam sobre seus filmes? Loach – Bem, se eles vão ver o filme, eles provavelmente já são de esquerda. Então os filmes costumam ser bem recebidos porque as pessoas que não gostariam deles geralmente não os veem. Quando os trabalhadores assistem aos filmes, geralmente há boas discussões em seguida.
Fórum – Nas últimas décadas, alguns intelectuais de esquerda têm afirmado que a questão de classe não é mais um fator dominante do capitalismo e que não deveríamos mais acreditar no potencial da classe operária como agente de atos revolucionários. Qual é sua opinião a respeito disso?
Loach – Discordo. Penso que a análise básica do capitalismo ainda é verdadeira quando diz que nós vivemos num sistema baseado em classes, que a classe trabalhadora e a classe dominante possuem interesses opostos, e que o conflito é inevitável. Também acredito que devemos mobilizar as pessoas para as suas forças políticas efetivas. Eu não sei de onde eles tiram essa idéia de que a classe operária desapareceu. Tudo o que eles comem, tudo o que eles compram, todo serviço que existe vem dos trabalhadores.
Fórum – Qual sua perspectiva para o século XXI em relação às alternativas ao capitalismo?
Loach – Acredito que nós apenas não temos uma liderança. Há um vácuo político na esquerda e ela tem partidos muito pequenos, muito mesmo, e a maioria da liderança é de direita; na Inglaterra, há um ou dois líderes sindicais que são mais de esquerda, e eles são bons, mas a maioria é de direita. O Partido Trabalhista é um partido social-democrata que acabou se tornando de direita. Então não é uma questão de haver ou não potencial na classe trabalhadora, e sim de que não há liderança, e sem algum tipo de líder é impossível ganharmos. É uma crise de liderança, e não da classe trabalhadora; é uma crise da forma como eles estão sendo liderados, e em que ritmo e análise essa liderança vai operar.
Fórum – Quando vemos seus filmes, e a classe trabalhadora está sempre representada como protagonista, podemos ver que você acredita no potencial de ação e mudança que ela tem. Ao mesmo tempo, se observarmos algumas das suas últimas obras, temos a impressão de que seu trabalho está um pouco mais pessimista, mostrando a classe trabalhadora um tanto fragmentada e sem grande possibilidade de ação.
Loach – Bem, você não pode fazer todo filme com uma espécie de falso otimismo. É necessário tentar descrever o mundo como ele é, e não como gostaria que ele fosse. Nós fizemos um filme em Los Angeles, que foi sobre uma vitória sindical [Pão e Rosas, 2000]. Mas não há muitas vitórias, entende? E você não pode fingir que há vitórias quando não há. E também às vezes o fato de que há um mau resultado pode fazer com que o público se sinta enraivecido e isso o motive a fazer algo a respeito. Acho que no fim das contas você deve ser fiel ao assunto. Mas há coisas boas acontecendo, como a enorme manifestação contra a guerra no Iraque, a maior na história do Reino Unido, e manifestações grandes contra Israel em Gaza também. A política não morreu.
Fórum – Você acredita que o cinema ganhou ou perdeu força enquanto arma política nesse cenário?
Loach – Não sei. Em geral o cinema é simplesmente uma forma de ganhar dinheiro, né? Não é muito mais do que isso. Ocasionalmente você verá um filme que adiciona alguma perspectiva, mas grande parte dos filmes é apenas escapismo, e geralmente de direita, especialmente as grandes produções, com a visão que eles têm da América e do restante do mundo, e o culto à celebridade. Acredito que na verdade o cinema não é um agente de mudanças, é um agente de reafirmação do status quo.
Fórum – Mas há pessoas fazendo algo diferente dentro da indústria, não? O que você pensa sobre o trabalho do cineasta americano Michael Moore, por exemplo?
Loach – Fico feliz que ele esteja fazendo seus filmes. Ele faz um tipo de filme muito diferente do meu, para o público norteamericano, então eu acredito que é essa persona que ele adota para se comunicar com eles. O que ele faz é muito bom, e ao menos está desafiando o sistema. Esteticamente, fazemos trabalhos diferentes. Mas eu não diria que um jeito é melhor do que o outro. Acredito que Moore tem uma comunicação muito precisa com seu público, e ele o conhece melhor do que ninguém.
Fórum – Você tem a mesma preocupação com seu público? Quando dirige um filme, quais são suas escolhas em termos de estética e comunicação?
Loach – Acredito que seja apenas trabalhar para fazer o filme o mais simples, claro, direto e econômico possível. Eu sempre acreditei que o público responde melhor ao que lhe parece mais autêntico. Mas é muito difícil generalizar sobre isso.
Fórum – Quais são suas principais influências estéticas?
Loach – Gosto muito do cinema tcheco, especificamente da Czech New Wave, e também do neo-realismo italiano. Há também os documentários, e as fotografias, especialmente aquelas que têm um caráter de simplicidade. Bertolt Brecht também continua sendo uma influência, especialmente seus escritos e sua análise política.
Fórum – Você conhece algum filme ou cineasta brasileiro?
Loach – Sim, Fernando Meirelles e Walter Salles. Gostei muito dos filmes que vi, e acredito que o cinema brasileiro está se reavivando.
À Procura de Eric
Eric é um carteiro de meia-idade que passa por problemas familiares e psicológicos já há algum tempo, fazendo com que ele se veja numa situação de enorme desolamento e impotência. Num esforço para se recuperar, acaba transformando Eric Cantona, ex-jogador de futebol e seu grande ídolo, numa espécie de guru espiritual. Tudo isso para descobrir, ao longo da narrativa, que para se realizar como indivíduo é preciso compreender que se pertence a um coletivo. Muitas das citações de Cantona e dos clichês de autoajuda presentes no filme ganham nova função dentro dos conteúdos tratados por Ken Loach.
Embora esse filme não seja explicitamente histórico e não discuta a luta de classes de maneira tão direta quanto seus outros trabalhos, ele consegue tratar de maneira bastante sensível e sutil mensagens que dialogam com o potencial do caráter popular do futebol e trazem à tona o resgate da importância da ação coletiva.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum 81. Nas bancas.
Segundo George McKnight, estudioso da obra do cineasta, “há uma singularidade no trabalho de Loach no decorrer de sua carreira, especialmente na análise política para a qual os filmes chamam nossa atenção, e uma diversidade nas formas através das quais ele tenta engajar essa atenção e nosso interesse político”.1
Em termos de conteúdo, podemos dizer que o diretor sempre foi famoso por filmes políticos e esquerdistas, nos quais os protagonistas são quase sempre trabalhadores. Porém, o que seus filmes têm de especial, quando comparados a outras produções do cinema político, é a forma como sua mensagem é transmitida.
Uma das características mais importantes do método de Ken Loach é a escolha do elenco de seus filmes. Muitos dos atores não são profissionais, e sim pessoas que se autorrepresentam, principalmente em seu cotidiano de trabalho. Para ele, se você escolhe uma estrela do cinema para interpretar um homem da classe trabalhadora, é como dizer que não existe uma pessoa da classe trabalhadora capaz de fazê-lo. Nas palavras do diretor, “Uma das coisas que tentamos fazer é dar dignidade e importância às pessoas comuns. Se tivéssemos um ator muito famoso no papel do protagonista, toda a discussão de classe teria sido ignorada ou tratada com condescendência. Teria sido perdida toda a qualidade básica que queríamos colocar na tela”. Seus filmes também são inteiramente falados no dialeto de seus personagens, marcando sua origem geográfica e sua classe social. E, dado que os atores são pessoas com o mesmo perfil do personagem, essa linguagem é a mais realista possível, não soando como uma caricatura que só ridicularizaria o grupo representado e não o permitiria se reconhecer de fato na tela.
Toda essa atitude está ligada ao seu projeto político de alcançar uma representação autêntica, flertando aqui com o documentário e com o realismo, mas não em suas formas tradicionais, apenas em sua ânsia pelo alcance de um “real”, de uma “verdade”. Para Loach, o ator deve participar de uma experiência, e não interpretar. É dessa forma que se alcança a autenticidade desejada, o que está acima da necessidade puramente estética da obra de arte “bem-feita”.
Ao fazer essa aliança entre ficção e documentário, entre arte e realidade, e entre estética e política, o diretor se coloca a certa distância do cinema comercial. Se nos identificamos com o protagonista, não é apenas porque ele é o herói no sentido tradicional do termo, e sim porque vivemos junto com ele um processo de aprendizagem, de conscientização e de luta. Se os filmes despertam emoções e lágrimas, estas são menos causadas por um efeito de manipulação, de truques de atuação e de música, do que o resultado da autenticidade no seu método de trabalho.
Diferentemente do cinema hollywoodiano, esse processo de identificação envolve não apenas a vida dos personagens mostrados em sua humanidade, mas também em relação com sua classe e sua luta política. O crítico John Hill menciona que o trabalho de Ken Loach “desencoraja uma identificação extremamente emocional com os personagens enquanto insiste nas relações das ações desses indivíduos com o processo econômico e social”.2 Mais do que uma identificação psicológica e mecanizada, existe aqui um processo de reconhecimento, que é de classe, e é através desse movimento que se consegue a aliança política desejada pelo diretor.
Além de se posicionar do lado dos oprimidos, por meio da escolha do roteiro e do posicionamento da câmera, as cenas de Ken Loach não são baseadas em abstrações de discursos esquerdistas, desconectadas das experiências cotidianas reais dos trabalhadores. Nas diversas cenas em que os trabalhadores discutem se devem ou não se afiliar a um sindicato, coletivizar terras etc., ouvimos argumentos genuínos de todos os tipos, e nenhum deles é desqualificado ou ridicularizado por uma teoria filosófica imposta pelo roteiro. Fazendo uso de improvisações, os atores e não atores fazem uma discussão na qual aparecem ao mesmo tempo seus medos reais, as oscilações e angústias de perder o pouco que têm para sobreviver e a vontade de melhorar suas vidas. A reflexão não é imposta à experiência real, mas emana da mesma. Segundo o diretor, “O processo didático do filme precisa ser feito através dos personagens que estão na história. Não se pode transmitir uma mensagem que não seja através das pessoas, porque, no fim das contas, seja um conflito político, uma guerra ou uma revolução, são as pessoas que os vivem e que são afetadas por eles”.
Em geral, a crítica de esquerda acusa seus filmes de serem ultrapassados ao focarem na classe trabalhadora como sujeito histórico deste novo século. Para Ken Loach, no entanto, representar apenas vitórias ou somente derrotas não é uma boa estratégia política. “É preciso fazer algo mais do que dizer ‘é assim que as coisas são’. De alguma maneira, é preciso indicar que ‘é assim que as coisas poderiam ser’”. A aposta de Ken Loach, contudo, não é em toda e qualquer vitória do oprimido em relação ao opressor. “Enquanto indivíduos”, ele diz, “não somos nada. Coletivamente, no entanto, somos tudo. Atos individuais não funcionam, é preciso estar organizado”.
Se Loach acerta ou não aqui, é difícil responder. O que podemos ver, ao menos, é que, em meio a uma era de cinismo neoliberal, a uma crise dos valores da esquerda e, mesmo dentro da própria esquerda a presença de teorias que menosprezam o potencial da arte política ou negam a possibilidade de uma revolução feita pela classe trabalhadora após a derrocada da União Soviética, Ken Loach parece cada vez mais ser uma voz dissidente.“As pessoas sempre lutam e é esse o tipo de coisas que nos dá esperança. Espero que nós indiquemos isso nos filmes. É sempre uma situação dinâmica. A coisa mais deprimente é o slogan político de que ‘não há alternativas’. Mas há. A História não terminou”. 3
“O cinema não é um agente de mudanças, mas de reafirmação do status quo” Fórum – No Brasil, seus filmes não são muito distribuídos e quem costuma conhecer sua obra são em geral intelectuais de esquerda. E na Europa, quem são as pessoas que veem seus filmes?
Ken Loach – Isso varia muito. Na França e na Itália é um público mais popular, muito maior do que no Reino Unido. Em meu país, em geral são pessoas que acompanham o cinema de arte. Mas nós fazemos exibições para sindicatos, grupos políticos e estudantes, então os filmes são muito usados fora do cinema, e para isso os DVDs têm sido muito úteis porque podemos organizar exibições seguidas de debate.
Fórum – O que os trabalhadores em geral pensam sobre seus filmes? Loach – Bem, se eles vão ver o filme, eles provavelmente já são de esquerda. Então os filmes costumam ser bem recebidos porque as pessoas que não gostariam deles geralmente não os veem. Quando os trabalhadores assistem aos filmes, geralmente há boas discussões em seguida.
Fórum – Nas últimas décadas, alguns intelectuais de esquerda têm afirmado que a questão de classe não é mais um fator dominante do capitalismo e que não deveríamos mais acreditar no potencial da classe operária como agente de atos revolucionários. Qual é sua opinião a respeito disso?
Loach – Discordo. Penso que a análise básica do capitalismo ainda é verdadeira quando diz que nós vivemos num sistema baseado em classes, que a classe trabalhadora e a classe dominante possuem interesses opostos, e que o conflito é inevitável. Também acredito que devemos mobilizar as pessoas para as suas forças políticas efetivas. Eu não sei de onde eles tiram essa idéia de que a classe operária desapareceu. Tudo o que eles comem, tudo o que eles compram, todo serviço que existe vem dos trabalhadores.
Fórum – Qual sua perspectiva para o século XXI em relação às alternativas ao capitalismo?
Loach – Acredito que nós apenas não temos uma liderança. Há um vácuo político na esquerda e ela tem partidos muito pequenos, muito mesmo, e a maioria da liderança é de direita; na Inglaterra, há um ou dois líderes sindicais que são mais de esquerda, e eles são bons, mas a maioria é de direita. O Partido Trabalhista é um partido social-democrata que acabou se tornando de direita. Então não é uma questão de haver ou não potencial na classe trabalhadora, e sim de que não há liderança, e sem algum tipo de líder é impossível ganharmos. É uma crise de liderança, e não da classe trabalhadora; é uma crise da forma como eles estão sendo liderados, e em que ritmo e análise essa liderança vai operar.
Fórum – Quando vemos seus filmes, e a classe trabalhadora está sempre representada como protagonista, podemos ver que você acredita no potencial de ação e mudança que ela tem. Ao mesmo tempo, se observarmos algumas das suas últimas obras, temos a impressão de que seu trabalho está um pouco mais pessimista, mostrando a classe trabalhadora um tanto fragmentada e sem grande possibilidade de ação.
Loach – Bem, você não pode fazer todo filme com uma espécie de falso otimismo. É necessário tentar descrever o mundo como ele é, e não como gostaria que ele fosse. Nós fizemos um filme em Los Angeles, que foi sobre uma vitória sindical [Pão e Rosas, 2000]. Mas não há muitas vitórias, entende? E você não pode fingir que há vitórias quando não há. E também às vezes o fato de que há um mau resultado pode fazer com que o público se sinta enraivecido e isso o motive a fazer algo a respeito. Acho que no fim das contas você deve ser fiel ao assunto. Mas há coisas boas acontecendo, como a enorme manifestação contra a guerra no Iraque, a maior na história do Reino Unido, e manifestações grandes contra Israel em Gaza também. A política não morreu.
Fórum – Você acredita que o cinema ganhou ou perdeu força enquanto arma política nesse cenário?
Loach – Não sei. Em geral o cinema é simplesmente uma forma de ganhar dinheiro, né? Não é muito mais do que isso. Ocasionalmente você verá um filme que adiciona alguma perspectiva, mas grande parte dos filmes é apenas escapismo, e geralmente de direita, especialmente as grandes produções, com a visão que eles têm da América e do restante do mundo, e o culto à celebridade. Acredito que na verdade o cinema não é um agente de mudanças, é um agente de reafirmação do status quo.
Fórum – Mas há pessoas fazendo algo diferente dentro da indústria, não? O que você pensa sobre o trabalho do cineasta americano Michael Moore, por exemplo?
Loach – Fico feliz que ele esteja fazendo seus filmes. Ele faz um tipo de filme muito diferente do meu, para o público norteamericano, então eu acredito que é essa persona que ele adota para se comunicar com eles. O que ele faz é muito bom, e ao menos está desafiando o sistema. Esteticamente, fazemos trabalhos diferentes. Mas eu não diria que um jeito é melhor do que o outro. Acredito que Moore tem uma comunicação muito precisa com seu público, e ele o conhece melhor do que ninguém.
Fórum – Você tem a mesma preocupação com seu público? Quando dirige um filme, quais são suas escolhas em termos de estética e comunicação?
Loach – Acredito que seja apenas trabalhar para fazer o filme o mais simples, claro, direto e econômico possível. Eu sempre acreditei que o público responde melhor ao que lhe parece mais autêntico. Mas é muito difícil generalizar sobre isso.
Fórum – Quais são suas principais influências estéticas?
Loach – Gosto muito do cinema tcheco, especificamente da Czech New Wave, e também do neo-realismo italiano. Há também os documentários, e as fotografias, especialmente aquelas que têm um caráter de simplicidade. Bertolt Brecht também continua sendo uma influência, especialmente seus escritos e sua análise política.
Fórum – Você conhece algum filme ou cineasta brasileiro?
Loach – Sim, Fernando Meirelles e Walter Salles. Gostei muito dos filmes que vi, e acredito que o cinema brasileiro está se reavivando.
À Procura de Eric
Eric é um carteiro de meia-idade que passa por problemas familiares e psicológicos já há algum tempo, fazendo com que ele se veja numa situação de enorme desolamento e impotência. Num esforço para se recuperar, acaba transformando Eric Cantona, ex-jogador de futebol e seu grande ídolo, numa espécie de guru espiritual. Tudo isso para descobrir, ao longo da narrativa, que para se realizar como indivíduo é preciso compreender que se pertence a um coletivo. Muitas das citações de Cantona e dos clichês de autoajuda presentes no filme ganham nova função dentro dos conteúdos tratados por Ken Loach.
Embora esse filme não seja explicitamente histórico e não discuta a luta de classes de maneira tão direta quanto seus outros trabalhos, ele consegue tratar de maneira bastante sensível e sutil mensagens que dialogam com o potencial do caráter popular do futebol e trazem à tona o resgate da importância da ação coletiva.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum 81. Nas bancas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário