Antigos teatros do Rio de Janeiro: o Recreio Dramático
Jornalista e professor de História do Teatro escreve sobre casa que abrigou peças de Arthur Azevedo
Artigos 05.01.2011 deixe aqui seu comentário
No tempo em que não havia televisão, rádio, cinema, internet e, se alguém quisesse enviar uma mensagem para outro em menos de 142 caracteres, tinha que ir aos Correios passar um telegrama, a alternativa de entretenimento cultural do carioca era ler os poucos livros editados ou ir ao teatro. A primeira opção esbarrava nos altos índices de analfabetismo: dados do censo de 1890 davam conta de que 48% da população carioca não sabia ler nem escrever. Sobrava a segunda, que aceitava tranquilamente cultos e incultos na plateia para espetáculos que não raro duravam três horas ou mais.
Em 1900, último ano do século XIX, existia na cidade do Rio de Janeiro razoável número de teatros que apresentavam as produções de companhias teatrais privadas (não havia leis de incentivo, patrocínio ou algo que o valha). A maioria daquelas casas de espetáculo sequer está de pé nos dias de hoje. Delas, só ficou a saudade e o registro do quão foram importantes para a diversão do carioca de então. Vejamos um dos mais famosos e simpáticos teatros cariocas que funcionou desde o século XIX até o início da segunda metade do século XX: o Recreio Dramático.
Ficava na Rua do Espírito Santo (atual 21 de Abril), no 45, pertinho da Praça Tiradentes. Essa região central do Rio concentrava um bom número de teatros nessa época. O Recreio foi inaugurado em 18 de agosto de 1877 com o nome de Teatro des Varietées, por Eugene Roger. O prédio foi adaptado de uma fábrica de sabão, ali construída e desativada em 1876, ficando o prédio abandonado por um ano. Em 1879, passou a se chamar “Brasilian Garden” (sic) e, no ano seguinte, recebeu o definitivo nome de Recreio Dramático. Tinha 20 camarotes, 508 cadeiras, 2 frisas, 60 galerias nobres, 223 cadeiras numeradas e cerca de 500 entradas gerais. Ele possuía um grande jardim com um bar onde havia mesas para freqüentadores. Nas peças de muito sucesso, quando cerca de duas mil pessoas pagavam para assistir às revistas de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio, muita gente ficava no bar do jardim, bebendo e conversando. No jardim, segundo Luiz Edmundo em seu admirável “O Rio de Janeiro do meu tempo”, também havia “uma bica velha, aflita e mal fechada, sem um copo, sem uma caneca de folha, para o espectador que não quer beber a cerveja do botequim que aí há. Vingança de um homem que tem negócio, paga aluguel de casa, empregados e impostos”. Os pagantes de ingressos populares e mesmo os vendedores de programas e fotos dos artistas, aliviavam suas bocas sedentas nessa democrática torneira.
No meu livro “Popularíssimo: o ator Brandão e seu tempo”, relatei o que aconteceu numa noite de gala do Recreio Dramático:
“No dia 4 de abril, o pano subiu para a estreia da revista de Moreira Sampaio em um prólogo, três atos e 16 quadros incluindo três apoteoses...O “Rio Nu.”
Todo o teatro estava eletrizado com aquela estreia. O Recreio estava abarrotado de gente. Desde cedo, o bilheteiro repetia monocordicamente: “Não há mais bilhetes a vender. Está lotado”. Nem com pedidos de “jeitinho” (essa instituição já existia naquela época!), nem com o célebre “você sabe com quem está falando?” (primo-irmão do “jeitinho”. Também já fazia das suas naqueles tempos) seria possível conseguir espaço naquela balbúrdia. Na chapelaria, o bengaleiro se transformava em um polvo para receber tantos chapéus e bengalas para guardar. Mas ele fazia tudo com um brilho de satisfação nos olhos, antecipando, com gozo, os bons cobres que receberia de gorjeta. O empresário Silva Pinto parecia um azougue. Não conseguia parar um minuto. Com um sorriso, ele recebia um cumprimento pela montagem; com um esgar de lábios e um cenho franzido, dava as últimas ordens; com um gesto de desculpas, dizia ser difícil atender a um pedido de algum retardatário conhecido...
O que havia de mais representativo na sociedade carioca estava, em boa parte, nos camarotes e nas cadeiras de 1a. A outra parte estava nas mesas do bar do jardim, na verdade, o ponto chique das noites de espetáculo do Recreio. Moreira Sampaio, o autor, acompanhava aquela movimentação com um sorriso permanentemente afivelado. Homens de teatro ou de fora dele, mas com livre trânsito no meio teatral, voejavam à sua volta como mariposas em torno da lâmpada. Mesmo aqueles com luz própria, como seu amigo Arthur Azevedo, acorriam para lhe apertar a mão, desejar sucesso, perguntar se já tinha outra peça em apronto.
No meio daquela babel de sons, ainda conseguia se sobressair o vozeirão do “Arrelia”:
- Libreto da revista Rio Nu a quinhentos réis! Retrato da atriz Pepa Ruiz e do ator Brandão a mil réis!
Não estava uma noite quente, mas dezenas de leques, ora em agitação nervosa das impacientes, ora em abano lento das senhoras de olhar distante, contribuíam para aquela sinfonia atonal de ruídos diversos.
Nas galerias, igualmente abarrotadas, suores, respiração, todos os odores eram democraticamente trocados entre os componentes daquela massa uniforme. Os gracejadores, com a garantia de estarem incógnitos no meio da turba, desfilavam o repertório habitual de piadinhas. Quando alguém enfiava os pés nas grades do balcão, ouvia-se logo:
- Tira a lancha!
Se fosse um joelho que surgisse por entre o gradil, não faltava um gaiato para alertar:
- Tira a bola!
No poço da orquestra, os músicos assumiram os seus lugares e testavam a afinação dos instrumentos, em meio ao som de tosses e pigarros vindos da platéia. O maestro Luiz Moreira, também autor de parte da trilha sonora, foi para o seu tablado, diante do grupo de professores musicistas. Os ponteiros do relógio do Recreio marcavam pontualmente 20 horas e 40 minutos quando os bicos de gás foram avivados, aumentando a luz na plaeéia e no palco. Silva Pinto ordenou que soasse o primeiro sinal. A orquestra atacou e a cortina subiu. Estava começando o espetáculo!”.
Depois de muitos anos de glórias, o Teatro Recreio foi fechado e demolido em 1968. Hoje, no espaço que ocupava, há um estacionamento e uma escadaria ligando a Rua 21 de abril à Avenida Chile.
*Marco Santos é jornalista, ator, professor de História do Teatro e autor do livro “Popularíssimo: o ator Brandão e seu tempo”
Em 1900, último ano do século XIX, existia na cidade do Rio de Janeiro razoável número de teatros que apresentavam as produções de companhias teatrais privadas (não havia leis de incentivo, patrocínio ou algo que o valha). A maioria daquelas casas de espetáculo sequer está de pé nos dias de hoje. Delas, só ficou a saudade e o registro do quão foram importantes para a diversão do carioca de então. Vejamos um dos mais famosos e simpáticos teatros cariocas que funcionou desde o século XIX até o início da segunda metade do século XX: o Recreio Dramático.
Ficava na Rua do Espírito Santo (atual 21 de Abril), no 45, pertinho da Praça Tiradentes. Essa região central do Rio concentrava um bom número de teatros nessa época. O Recreio foi inaugurado em 18 de agosto de 1877 com o nome de Teatro des Varietées, por Eugene Roger. O prédio foi adaptado de uma fábrica de sabão, ali construída e desativada em 1876, ficando o prédio abandonado por um ano. Em 1879, passou a se chamar “Brasilian Garden” (sic) e, no ano seguinte, recebeu o definitivo nome de Recreio Dramático. Tinha 20 camarotes, 508 cadeiras, 2 frisas, 60 galerias nobres, 223 cadeiras numeradas e cerca de 500 entradas gerais. Ele possuía um grande jardim com um bar onde havia mesas para freqüentadores. Nas peças de muito sucesso, quando cerca de duas mil pessoas pagavam para assistir às revistas de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio, muita gente ficava no bar do jardim, bebendo e conversando. No jardim, segundo Luiz Edmundo em seu admirável “O Rio de Janeiro do meu tempo”, também havia “uma bica velha, aflita e mal fechada, sem um copo, sem uma caneca de folha, para o espectador que não quer beber a cerveja do botequim que aí há. Vingança de um homem que tem negócio, paga aluguel de casa, empregados e impostos”. Os pagantes de ingressos populares e mesmo os vendedores de programas e fotos dos artistas, aliviavam suas bocas sedentas nessa democrática torneira.
No meu livro “Popularíssimo: o ator Brandão e seu tempo”, relatei o que aconteceu numa noite de gala do Recreio Dramático:
“No dia 4 de abril, o pano subiu para a estreia da revista de Moreira Sampaio em um prólogo, três atos e 16 quadros incluindo três apoteoses...O “Rio Nu.”
Todo o teatro estava eletrizado com aquela estreia. O Recreio estava abarrotado de gente. Desde cedo, o bilheteiro repetia monocordicamente: “Não há mais bilhetes a vender. Está lotado”. Nem com pedidos de “jeitinho” (essa instituição já existia naquela época!), nem com o célebre “você sabe com quem está falando?” (primo-irmão do “jeitinho”. Também já fazia das suas naqueles tempos) seria possível conseguir espaço naquela balbúrdia. Na chapelaria, o bengaleiro se transformava em um polvo para receber tantos chapéus e bengalas para guardar. Mas ele fazia tudo com um brilho de satisfação nos olhos, antecipando, com gozo, os bons cobres que receberia de gorjeta. O empresário Silva Pinto parecia um azougue. Não conseguia parar um minuto. Com um sorriso, ele recebia um cumprimento pela montagem; com um esgar de lábios e um cenho franzido, dava as últimas ordens; com um gesto de desculpas, dizia ser difícil atender a um pedido de algum retardatário conhecido...
O que havia de mais representativo na sociedade carioca estava, em boa parte, nos camarotes e nas cadeiras de 1a. A outra parte estava nas mesas do bar do jardim, na verdade, o ponto chique das noites de espetáculo do Recreio. Moreira Sampaio, o autor, acompanhava aquela movimentação com um sorriso permanentemente afivelado. Homens de teatro ou de fora dele, mas com livre trânsito no meio teatral, voejavam à sua volta como mariposas em torno da lâmpada. Mesmo aqueles com luz própria, como seu amigo Arthur Azevedo, acorriam para lhe apertar a mão, desejar sucesso, perguntar se já tinha outra peça em apronto.
No meio daquela babel de sons, ainda conseguia se sobressair o vozeirão do “Arrelia”:
- Libreto da revista Rio Nu a quinhentos réis! Retrato da atriz Pepa Ruiz e do ator Brandão a mil réis!
Não estava uma noite quente, mas dezenas de leques, ora em agitação nervosa das impacientes, ora em abano lento das senhoras de olhar distante, contribuíam para aquela sinfonia atonal de ruídos diversos.
Nas galerias, igualmente abarrotadas, suores, respiração, todos os odores eram democraticamente trocados entre os componentes daquela massa uniforme. Os gracejadores, com a garantia de estarem incógnitos no meio da turba, desfilavam o repertório habitual de piadinhas. Quando alguém enfiava os pés nas grades do balcão, ouvia-se logo:
- Tira a lancha!
Se fosse um joelho que surgisse por entre o gradil, não faltava um gaiato para alertar:
- Tira a bola!
No poço da orquestra, os músicos assumiram os seus lugares e testavam a afinação dos instrumentos, em meio ao som de tosses e pigarros vindos da platéia. O maestro Luiz Moreira, também autor de parte da trilha sonora, foi para o seu tablado, diante do grupo de professores musicistas. Os ponteiros do relógio do Recreio marcavam pontualmente 20 horas e 40 minutos quando os bicos de gás foram avivados, aumentando a luz na plaeéia e no palco. Silva Pinto ordenou que soasse o primeiro sinal. A orquestra atacou e a cortina subiu. Estava começando o espetáculo!”.
Depois de muitos anos de glórias, o Teatro Recreio foi fechado e demolido em 1968. Hoje, no espaço que ocupava, há um estacionamento e uma escadaria ligando a Rua 21 de abril à Avenida Chile.
*Marco Santos é jornalista, ator, professor de História do Teatro e autor do livro “Popularíssimo: o ator Brandão e seu tempo”
Colaboração de Marco Santos
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