Domingo de Circo
Toda tua chegada nessa radiosa manhã de domingo embandeirada de infância. Solene e festivo circo armado no terreno baldio do meu coração.
As piruetas do palhaço são malabaristas alegrias na vertigem de não saber o que faço.
Rugem feras em meu sangue; cortam-me espadas de fogo.
Motos loucas de globo da morte, rufar de tambores nas entranhas, anúncio espanholado de espetáculo, fazem de tua chegada minha sorte.
Domingo redondo aberto picadeiro, ensolarado por tão forte ardor, me refunde queima alucina:
olhos vendados,
sem rede sobre o chão,
atiro-me do trapézio
em teu amor.
Do livro A Arte de Semear Estrelas, de Frei Betto.

sábado, 15 de junho de 2013

O Povo Brasileiro

Fernando da Mota Lima >
Índio do Xingú.
Índio do Xingú.

Darcy Ribeiro é um dos últimos grandes intérpretes da cultura Brasileira. Depois de sua morte, em 1997, restou apenas Roberto da Matta, curiosamente omitido da mais recente coletânea de textos consagrada aos intérpretes do Brasil. Refiro-me à obra Um enigma chamado Brasil, organizada por André Botelho e Lillia Schwarcz. A omissão de da Matta é ainda mais estranha se consideramos que nela figuram nomes bem menos conhecidos e influentes, além de outros pouco característicos dessa tradição que tenho contemplado numa série de artigos sobre a cultura brasileira.
A obra de Darcy Ribeiro é marcada de ponta a ponta pelo espírito de participação apaixonada. Intelectual declaradamente militante, Darcy escreveu sempre movido pelo desejo de ação. Sua luta em defesa do povo brasileiro, notadamente as camadas mais impiedosamente oprimidas, imprimiu à sua biografia tons de grandes feitos românticos, uma vontade de mudança revolucionária que lhe custou exílio político e muita instabilidade, incerteza e derrota. Sendo no entanto um otimista incorrigível, manteve-se fiel à sua convicção de que desse Brasil tão surpreendente, de tão complicada organização e explicação teórica, brotaria uma nova Roma, como dizia, lavada em sangue negro e índio. Esses rompantes nacionalistas em meio a uma obra de análise de natureza científica levam o autor a extremos confinantes com uma visão cultural ufanista. Isso é patente no tom com que louva nossa miscigenação e sensualidade.
Darcy Ribeiro foi militante do Partido Comunista nos anos 1940. Nessa mesma década especializou-se em etnologia na Escola Livre de Sociologia e Política, de São Paulo, onde foi colega de Florestan Fernandes, que se tornou o grande nome da escola de sociologia paulista. Inspirado pelas lições de Herbert Baldus, um dos professores estrangeiros contratados pela Escola Livre de Sociologia e Política, dedicou-se apaixonadamente ao estudo das culturas indígenas e viveu durante cerca de dez anos entre os índios. Isso explica o lugar de relevo que nossa matriz indígena ocupa na sua obra e em particular em O Povo Brasileiro.
Darcy Ribeiro também se destacou por sua luta tenaz em defesa da educação. Discípulo e amigo fiel de Anísio Teixeira, um dos líderes do Movimento da Escola Nova, lutou até o fim pela institucionalização da escola pública de qualidade segundo o modelo das melhores políticas de educação pública. Além de ser um dos criadores da Universidade de Brasília e da Universidade Estadual do Norte Fluminense, atuou de forma combativa na esfera universitária e política em vários países latino-americanos durante seus anos de exílio político. O exílio lhe foi imposto pelos militares devido ao papel chave que desempenhou no governo deposto de João Goulart – era Ministro da Casa Civil – além de sua tentativa de organizar uma resistência armada ao golpe militar de 1964. Os militares permitiram que retornasse ao Brasil antes da anistia política por estar sofrendo de um câncer no pulmão que, esperava-se, logo o mataria. O fato, porém, é que o tenaz e incorrigível otimista sobreviveu até 1997. Estava internado na UTI quando fugiu para  refugiar-se na casa que tinha à beira de uma praia. Lá conseguiu dar forma definitiva a seu livro O Povo Brasileiro, obsessão da sua vida. O livro foi publicado em 1995.
Esta obra, que perseguiu a imaginação criadora de Darcy Ribeiro durante mais de 30 anos, como ele mesmo frisa no prefácio, é uma ambiciosa tentativa de aplicar à formação sociocultural do Brasil a teoria geral que ele elaborou durante muito tempo. Dela resultaram obras como O Processo Civilizatório, sua teoria mais abrangente, As Américas e a Civilização, restrita à antropologia das Américas, Os Brasileiros: teoria do Brasil, e por fim O Povo Brasileiro. Retrocedendo às nossas origens, como de resto procederam todos os explicadores do Brasil, Darcy Ribeiro parte das três matrizes formadoras da nossa cultura que, através de complexos processos de encontro, conflito e caldeamento compuseram as linhas fundamentais da nossa formação. Darcy Ribeiro louva o caráter híbrido da nossa cultura – não raro em tom que beira o ufanismo, como acima sublinhei -,  sua sensualidade e alegria de viver, pontos nos quais muito se aproxima de Gilberto Freyre, mas também ressalta com igual intensidade os processos de conflito e espoliação que marcam o conjunto da nossa formação social.
Começando pela cultura indígena, o autor deixa evidentes os vínculos profundos que o prendem a essa matriz da nossa formação. Ela foi decisiva, entre outras coisas, por ser portadora de uma rica experiência antropológica de enraizamento no trópico, na imensidão das matas e florestas, onde os indígenas desenvolveram formas de cultura ajustadas ao ambiente. O colonizador português soube aliás astutamente assimilar no convívio com o indígena os meios técnicos e culturais necessários para adaptar-se como europeu às condições impostas pelo ambiente novo. Além de domesticar muitas plantas  selvagens que transformou em meios fundamentais de nutrição, como o milho e a mandioca, o índio desenvolveu no trópico uma cultura própria e autônoma. Somente a visão etnocêntrica do colonizador poderia negar a esses grupos humanos uma riqueza de vida espiritual que é profundamente diferente da europeia, ou civilizada em geral, mas igualmente significativa do ponto de vista antropológico.
O contato das culturas indígenas com o colonizador europeu resultou desastroso para sua sobrevivência. Além de lhes impor formas brutais de deculturação, termo que copio do livro de Darcy Ribeiro, de repressão ou supressão  da sua cultura, como foi patente no caso da catequização imposta pelos jesuítas, essas culturas foram submetidas a um verdadeiro etnocídio provocado por doenças trazidas pelo europeu, estranhas ao meio tropical, que dizimaram muitas tribos. Havia naturalmente um conflito insolúvel entre essas culturas, bem  próximas da natureza e regidas por valores culturais incompatíveis com os do colonizador, e o projeto mercantil do português, que buscava no trópico apenas a riqueza fácil, as pedras preciosas, a natureza traduzível em lucro e acumulação. Foi também por essa razão que o português tentou sem sucesso escravizar o índio. Este importava para aquele, antes de tudo, como fonte de exploração econômica. Diante da impossibilidade de ajustá-lo à máquina de produção mercantil, o colonizador adotou por fim a política de escravização do negro.
O fim do parágrafo acima explica de modo sumário como a terceira matriz da nossa formação cultural junta-se às duas primeiras. Darcy Ribeiro descreve em dois longos parágrafos notáveis (ver pp. 119-120), de intensidade descritiva comovente e chocante,  o  percurso de vida do escravo africano desde o  momento em que era aprisionado e vendido ou trocado no seu continente até o seu fim como trabalhador escravizado no trópico. Segundo o autor, o tempo de vida médio de um escravo submetido ao trabalho pesado – portanto distinto do escravo doméstico preferencialmente estudado por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala – ia de sete a dez anos. Trabalhando o ano inteiro, sem pausa sequer aos domingos, dia em que era liberado para cultivar a rocinha de onde extrairia seu sustento. Melhor que pobremente parafrasear os parágrafos citados é citar o segundo, que vai da página 119 à 120:
“Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos – maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou  orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela como um graveto oleoso”.
Parafraseando  Brás Cubas, de Machado de Assis, foi sobre esse solo tenebroso que a elite brasileira  se formou, assim como foi sob ele, ou calcado pelas botas da escravidão, que se moldou e torturou não apenas um povo, o brasileiro, mas uma rede de instituições, técnicas de governo e dominação, de regime de trabalho espoliador, de práticas de vida e relação social que infelizmente não desapareceram de todo da nossa realidade presente.
De onde afinal vem esse povo tão sofridamente descrito no livro de Darcy Ribeiro, de onde procede sua identidade? O autor propõe uma teoria baseada na condição de “ninguendade”, com perdão do neologismo esquisito, do fruto da miscigenação processada inicialmente entre o colonizador português e a índia, mais tarde entre aquele e a escrava negra. Darcy afirma que os filhos brotados desses acasalamentos, origem da miscigenação generalizada que passou a caracterizar a etnia brasileira, eram ninguém, já que nem eram brancos, nem índios nem negros. Eram produto de uma mistura rejeitada por qualquer das etnias individuais das quais eram formados. Foi portanto dessa condição de zé ninguém, de “ninguendade” que se forjou a nossa identidade cultural, o brasileiro que já não  era individualmente nenhuma das etnias formadoras, mas produto da sua miscigenação, isto é, um ser étnico novo.
Tanto quanto Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro ressalta o fato de que o Brasil se formou economicamente como um apêndice da Europa, colônia produtora de bens primários subordinada à demanda do mercado europeu. Esse dado primário está na raiz da violência exercida pela classe dominante ao longo da nossa história. Está também inscrito na condição de proletariado externo vivida pelo povo brasileiro. Darcy Ribeiro usa repetidas vezes expressões cruas, mas infelizmente verdadeiras, para denunciar os processos brutais que ao longo da nossa formação histórica oprimiram nosso povo. Quando usa expressões como moinhos de gastar gente, ou gente usada como carvão, denuncia a opressão imposta pela classe dominante ao povo, particularmente o povo escravizado, o povo castigado por um regime de trabalho incompatível com o ideário humanista e cristão nunca de fato estendido à maioria da população.

http://revistasera.info/o-povo-brasileiro/

África em bom português

De um lado, pesquisadores que sentiram a necessidade de saber que tipos de publicações existiam sobre a África em língua portuguesa. Do outro, a Fundação Portugal-África, que procurava desenvolver projetos deste cunho. Da parceria surgiu o portal “Memórias da África e do Oriente”, que hoje já conta com cerca de 353.990 registros bibliográficos, entre 2.500 livros e revistas digitalizados.


Percebe-se hoje um grande empenho por parte de instituições, como a internacional Aluka (www.aluka.org) e a filial brasileira da Unesco – com seu programa intitulado “Brasil-África: Histórias Cruzadas” – em promover a valorização da cultura afrodescendente. Até meados dos anos 1990, estudiosos precisavam deslocar-se para os países que queriam pesquisar para até mesmo realizar o levantamento de informações. “Isso limitava muito as possibilidades de quem não conseguia, simultaneamente, grande disponibilidade de tempo para estar longe de casa e recursos financeiros”, argumenta o coordenador do portal “Memórias da África”, Carlos Sangreman.

Assim surgiu o projeto com o objetivo de realizar o levantamento e a catalogação de acervos documentais sobre o continente africano , com ênfase nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), no século XX. “Inicialmente, o âmbito restringiu-se apenas a instituições em Portugal, mas, progressivamente, foram sendo incorporados acervos de instituições de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe”, explica Sangreman, que reclama da falta de participação do Brasil e de Angola. Mas o programa não poderia focar apenas no mapeamento de acervos. A partir de 2005, observando-se que certos padrões de busca em sites, como o Google, levavam ao acesso imediato às obras e não apenas ao local onde se encontravam, veio a necessidade de rever as diretrizes do programa. “Esta mudança de paradigma contaminou o projeto, também porque as pessoas nos escreviam cada vez mais solicitando o acesso às obras digitalizadas”.
Em dezembro do ano passado, o “Memórias da África” já contava com 353.990 registros bibliográficos e 343.819 páginas digitalizadas. O trabalho conta com a colaboração de algo em torno de 70 instituições, sendo 35 portuguesas, 25 localizadas na Índia e as restantes distribuídas nos vários Palop. Para 2013, uma nova versão do portal está sendo planejada para facilitar disponibilização de informações atuais.

Pesquisadora responsável pelo “Programa Brasil-África”, semelhante ao da Unesco no Brasil, Marilza Regattieri afirma que a aproximação étnico-cultural promovida por iniciativas assim é fundamental, pois corrobora um entendimento mútuo. “O princípio é dar acesso ao continente africano e à sua história, permitindo o reconhecimento do papel que aquela cultura desempenhou na formação do nosso país. Mas não só isso, é importante também para que os próprios africanos passem a reconhecer a herança que seus ancestrais deixaram em outros continentes”.


http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/africa-em-bom-portugues

quarta-feira, 12 de junho de 2013

AOS QUE AINDA SABEM SONHAR

Por Andre Borges Lopes


O fundamental não é lutar pelo direito de fumar maconha em paz na sala da sua casa. O fundamental não é o direito de andar vestida como uma vadia sem ser agredida por machos boçais que acham que têm esse direito porque você está "disponível". O fundamental não é garantir a opção de um aborto assistido para as mulheres que foram vítimas de estupro ou que correm risco de vida. O fundamental não é impedir que a internação compulsória de usuários de drogas se transforme em ferramenta de uma política de higienismo social e eliminação estética do que enfeia a cidade. O fundamental não é lutar contra a venda da pena de morte e da redução da maioridade penal como soluções finais para a violência. O fundamental não é esculachar os torturadores impunes da ditadura. O fundamental não é garantir aos indígenas remanescentes o direito à demarcação das suas reservas de terras. O fundamental não é o aumento de 20 centavos num transporte público que fica a cada dia mais lotado e precário.

O fundamental é que estamos vivendo uma brutal ofensiva do pensamento conservador, que coloca em risco muitas décadas de conquistas civilizatórias da sociedade brasileira.

O fundamental é que sob o manto protetor do "crescimento com redução das desigualdades" fermenta um modelo social que reproduz – agora em escala socialmente ampliada – o que há de pior na sociedade de consumo, individualista ao extremo, competitiva, ostentatória e sem nenhum espaço para a solidariedade.

O fundamental é que a modesta redução da nossa brutal desigualdade social ainda não veio acompanhada por uma esperada redução da violência e da criminalidade, muito pelo contrário. E não há projeto nacional de combate à violência que fuja do discurso meramente repressivo ou da elegia à truculência policial.

O fundamental é que a democratização do acesso ao ensino básico e à universidade por vezes deixam de ser um instrumento de iluminação e arejamento dos indivíduos e da própria sociedade, e são reduzidos a uma promessa de escada para a ascensão social via títulos e diplomas, ao som de sertanejo universitário.

O fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos "libertários" e "de esquerda" hoje abriram mão de disputar ideologicamente os corações e mentes dos jovens e dos novos "incluídos sociais" e se contentam em garantir a fidelidade dos seus votos nas urnas, a cada dois anos.

O fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos "sociais-democratas" já não tem nada a oferecer à juventude além de um neo-udenismo moralista que flerta desavergonhadamente com o autoritarismo e o fascismo mais desbragados.

O fundamental é que a promessa da militância verde e ecológica vai aos poucos rendendo-se aos balcões de negócio da velha política partidária ou ao marketing politicamente correto das grandes corporações.

O fundamental é que os sindicatos, movimentos populares e organizações estudantis estão entregues a um processo de burocratização, aparelhamento e defesa de interesses paroquiais que os torna refratários a uma participação dinâmica, entusiasmada e libertária.

O fundamental é que temos em São Paulo um governo estadual que é francamente conservador e repressivo, ao lado de um governo federal que é supostamente "progressista de coalizão". Mas entre a causa da liberação da maconha e defesa da internação compulsória, ambos escolhem a internação.

Entre as prostitutas e a hipocrisia, ambos ficam com a hipocrisia. Entre os índios e os agronegócio, ambos aliam-se aos ruralistas. Entre a velha imprensa embolorada e a efervescência libertária da Internet, ambos namoram com a velha mídia. Entre o estado laico e os votos da bancada evangélica, ambos contemporizam com o Malafaia. Entre Jean Willys e Feliciano, ambos ficam em cima do
muro, calculando quem pode lhes render mais votos.

O fundamental é que o temor covarde em expor à luz os crimes e julgar os aqueles agentes de estado que torturaram e mataram durante da ditadura acabou conferindo legitimidade a auto-anistia imposta pelos militares, muitos dos quais hoje se orgulham publicamente dos seus crimes bárbaros – o que nos leva a crer que voltarão a cometê-los se lhes for dada nova oportunidade.

O fundamental é que vivemos numa sociedade que (para usar dois termos anacrônicos) vai ficando cada vez mais bunda-mole e careta. Assustadoramente careta na política, nos costumes e nas liberdades individuais se comparada com os sonhos libertários dos anos 1960, ou mesmo com as esperanças democráticas dos anos 1980. Vivemos uma grande ofensiva do coxismo: conservador nas ideias, conformado no dia-a-dia, revoltadinho no trânsito engarrafado e no teclado do Facebook.

O fundamental é que nenhum grupo político no poder ou fora dele tem hoje qualquer nível mínimo de interlocução com uma parte enorme da molecada – seja nas universidades ou nas periferias – que não se conforma com a falta de perspectivas minimamente interessantes dentro dessa sociedade cada vez mais bundona, careta e medíocre.

Os mesmos indignados que se esgoelam no mundo virtual clamando que a juventude e os estudantes "se levantem" contra o governo e a inação da sociedade, são os primeiros a pedir que a tropa de choque baixe a borracha nos "vagabundos" quando eles fecham a 23 de Maio e atrapalham o deslocamento dos seus SUVs rumo à happy-hour nos Jardins.

Acuados, os políticos "de esquerda" se horrorizam com as cenas de sacos de lixo pegando fogo no meio da rua e se apressam a condenar na TV os atos de "vandalismo", pois morrem de medo que essas fogueiras causem pavor em uma classe média cada vez mais conservadora e isso possa lhes custar preciosos votos na próxima eleição.

Enquanto isso a molecada, no seu saudável inconformismo, vai para as ruas defender – FUNDAMENTALMENTE – o seu direito de sonhar com um mundo diferente. Um mundo onde o ensino, os trens e os ônibus sejam de qualidade e gratuitos para quem deles precisa. Onde os cidadãos tenham autonomia de decidir sobre o que devem e o que não devem fumar ou beber. Onde os índios possam nos mostrar que existem outros modos de vida possíveis nesse planeta, fora da lógica do agribusiness e das safras recordes. Onde crenças e religião sejam assunto de foro íntimo, e não políticas de Estado. Onde cada um possa decidir livremente com quem prefere trepar, casar e compartilhar (ou não) a criação dos filhos. Onde o conceito de Democracia não se resuma à obrigação de digitar meia dúzia de números nas urnas eletrônicas a cada dois anos.

Sempre vai haver quem prefira como modelo de estudante exemplar aquele sujeito valoroso que trabalha na firma das 8 da manhã às 6 da tarde, pega sem reclamar o metrô lotado, encara mais quatro horas de aulas meia-boca numa sala cheia de alunos sonolentos em busca de um canudo de papel, volta para casa dos pais tarde da noite para jantar, dormir e sonhar com um cargo de gerente e um apartamento com varanda gourmet.

Não é meu caso. Não tenho nem sombra de dúvida de que prefiro esses inconformados que atrapalham o trânsito e jogam pedra na polícia. Ainda que eles nos pareçam filhinhos-de-papai, ingênuos em seus sonhos, utópicos em suas propostas, politicamente manobráveis em suas reivindicações, irresponsavelmente seduzidos pelos provocadores de sempre.

Desde a Antiguidade, esses jovens ingênuos e irresponsáveis são o sal da terra, a luz do sol que impede que a humanidade apodreça no bolor da mediocridade, na inércia do conformismo, na falta de sentido do consumismo ostentatório, nas milenares pilantragens travestidas de iluminação espiritual.

Esses moleques que tomam as ruas e dão a cara para bater incomodam porque quebram vidros, depredam ônibus e paralisam o trânsito. Mas incomodam muito mais porque nos obrigam a olhar para dentro das nossas próprias vidas e, nessa hora, descobrimos que desaprendemos a sonhar.

fonte:
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/jovens-vao-as-ruas-e-nos-mostram-que-desaprendemos-a-sonhar