Domingo de Circo
Toda tua chegada nessa radiosa manhã de domingo embandeirada de infância. Solene e festivo circo armado no terreno baldio do meu coração.
As piruetas do palhaço são malabaristas alegrias na vertigem de não saber o que faço.
Rugem feras em meu sangue; cortam-me espadas de fogo.
Motos loucas de globo da morte, rufar de tambores nas entranhas, anúncio espanholado de espetáculo, fazem de tua chegada minha sorte.
Domingo redondo aberto picadeiro, ensolarado por tão forte ardor, me refunde queima alucina:
olhos vendados,
sem rede sobre o chão,
atiro-me do trapézio
em teu amor.
Do livro A Arte de Semear Estrelas, de Frei Betto.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Escrita indígena: registro, oralidade e literatura



DANIEL MUNDURUKU | OUTUBRO 2011
Escrita indígena: registro, oralidade e literatura
O reencontro da memória
A escrita é uma conquista recente para a maioria dos 250 povos indígenas que habitam nosso país desde tempos imemoriais. Detentores de um conhecimento ancestral apreendido pelos sons das palavras dos avôs, estes povos sempre priorizaram a fala, a palavra, a oralidade como instrumento de transmissão da tradição, obrigando as novas gerações a exercitarem a memória, guardiã das histórias vividas e criadas.
A memória é, ao mesmo tempo, passado e presente, que se encontram para atualizar os repertórios e possibilitar novos sentidos,  perpetuados em novos rituais, que, por sua vez, abrigarão elementos novos num circular movimento repetido à exaustão ao longo da história.
Esses povos traziam consigo a memória ancestral. Entretanto, essa harmônica tranquilidade foi alcançada pelo braço forte dos invasores: caçadores de riquezas e de almas. Passaram por cima da memória e escreveram no corpo dos vencidos uma história de dor e sofrimento. Muitos dos atingidos pela gana destruidora tiveram que ocultar-se sob outras identidades para serem confundidos com os desvalidos da sorte e assim poderem sobreviver. Esses se tornaram sem-terras, sem-teto, sem-história, sem-humanidade. Tiveram que aceitar a dura realidade dos sem-memória, gente das cidades que precisa guardar nos livros seu medo do esquecimento.
Por outro lado – e graças ao sacrifício dos primeiros – outro grupo pode manter sua memória tradicional e continuar sua vida com mais segurança e garantia. Esses povos foram contatados um pouco mais tarde, quando os invasores chegaram à Amazônia e tentaram conquistá-la, como já haviam feito em outras regiões. Tiveram menos sorte, mas também fizeram relativo estrago nas culturas locais e as tornaram dependentes dos vícios trazidos de outras terras. Foram enfraquecidos pela bebida, entorpecidos pela divindade cristã e envergonhados em sua dignidade e humanidade.
Esses povos – uns e outros – estão vivos. Suas memórias ancestrais ainda estão fortes, mas ainda têm de enfrentar uma realidade mais dura que a de seus antepassados.  Uma realidade que precisa ser entendida e enfrentada. Não mais com um enfrentamento bélico, mas através do domínio da tecnologia da cidade. Ela é tão fundamental para a sobrevivência física quanto para a manutenção da memória ancestral.
Se estes povos fizerem apenas a “tradução” da sociedade ocidental para seu repertório mítico, correrão o risco de ceder ao canto da sereia e abandonar a vida que tão gloriosamente lutaram para manter. É preciso interpretar. É preciso conhecer. É preciso se tornar conhecido. É preciso escrever – mesmo com tintas do sangue – a história que foi tantas vezes negada.
A escrita é uma técnica. É preciso dominar essa técnica com perfeição para poder utilizá-la a favor da gente indígena. Técnica não é negação do que se é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o ser na medida em que precisa adentrar no universo mítico para dar-se a conhecer ao outro.
O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa noticia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral.
Há um fio muito tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar este fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não é atualizada. É preciso notar que a memória procura dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma delas (isso sem falar nas outras formas de expressão e na cultura, de maneira geral). E é também uma forma contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental para os dias atuais.
Pensar a literatura indígena é pensar no movimento da memória para apreender as possibilidades de mover-se num tempo que a nega e que nega os povos que a afirmam. A escrita indígena é a afirmação da oralidade. Por isso atrevo-me a dizer como a poeta indígena Potiguara Graça Graúna:
Ao escrever,
dou conta da minha ancestralidade;
do caminho de volta,
do meu lugar no mundo.

O livro infantil digital

23/05/2011
 
Na ordem do dia das preocupações de todo editor, pensar o livro digital infantil nos remete a um universo de questões bastante específicas e diferenciadas dos outros segmentos editoriais. Para além da contraposição entre a afirmação do livro digital e o livro em papel, para além da discussão do desaparecimento definitivo do livro tal como o conhecemos hoje, há questões específicas do livro infantil que se delineiam nesse universo ainda duvidoso em que se move a edição digital.
 
No caminhão de perguntas sem resposta com o qual adentro este universo, um dos aspectos que não deixam margem a duvidas é a certeza de que estamos vivendo um momento de efetiva inflexão da indústria editorial. Seja qual for o caminho que for tomado - a edição do livro em papel, a edição digital ou ambas -, todas as etapas do fazer editorial estão postas em questão e provavelmente passem por um franco processo de mudanças. Não há nenhuma novidade nisso e muito se tem falado a esse respeito.
 
Porém, a sensação de ser testemunha desta reviravolta no mundo da edição só fui ter mesmo algumas semanas atrás participando do TOC (Tools of Change for Publishing), conferência sobre o futuro do livro infantil promovida pela Feira de Bolonha. Pela primeira vez, a maior feira dedicada ao livro para crianças e jovens organizou uma discussão sobre o livro digital e sobre as mudanças que este novo suporte podem representar para este mercado. Tal reconhecimento e a convocatória para um prêmio anual a partir de 2012 para o melhor livro digital, o Bologna Ragazzi Digital Award, instituem e chancelam o livro digital infantil no universo do que há de melhor na produção do livro infantil e juvenil.
 
O forte interesse despertado pelo tema ficou comprovado pelo público presente. Mais de 200 pessoas de 27 países diferentes se reuniram no domingo, véspera da abertura da feira, durante um longo dia onde se sucederam palestras e mesas redondas sobre três grandes temas: um geral sobre o mercado, outro sobre a edição e as mudanças que desde já se vislumbram e um terceiro sobre os novos suportes e suas características.
 
Mais do que dar respostas, essa jornada reiterou dúvidas e confirmou as primeiras impressões. Quem foi ao TOC atrás de respostas ou de modelos de negócios saiu com a certeza de que ninguém sabe ao certo como fazer. E o que fazer depende de muito investimento e experimentação. Movendo-se ainda às cegas, os grupos editoriais que já atuam neste segmento de mercado deixaram claro o caráter experimental de suas iniciativas e pesquisas, assim como o grande investimento que significa entrar para valer e de forma original neste segmento. Além dos investimentos em pesquisa e criação, foi reiterado que o livro digital exige constantes atualizações no ritmo das inovações tecnológicas exigidas pelo seu suporte.
 
Se o avanço e a substituição do livro em papel pelo formato digital é inquestionável em vários segmentos do mercado editorial, é só pensar nas enciclopédias, nos dicionários e nos livros científicos, conteúdos que se adaptam melhor a este formato e suas inovações. No caso do livro infantil, o que os exemplos de ponta das experiências digitais mostram não são apenas transposições para um outro formato. Ao contrário, o que temos são novos produtos: livros animados, com recursos interativos muito próximos dos brinquedos que exigem aptidões diferentes daquelas que a leitura (em silêncio ou compartilhada) exige.
 
Reconhecer estas diferenças não significa de modo algum desprezar as consequências que estas inovações impõem ao mercado editorial do livro infantil. A reviravolta está em curso e a imaginação e criatividade dos editores para fazer frente a estas mudanças são onde reside, do meu ponto de vista, a sobrevivência com maior ou menor peso do livro em papel. É importante repensar o que se faz, ir atrás de uma maior qualidade, explorar ao máximo os recursos gráficos, descobrir novos nichos e novos formatos de modo que o livro em papel se torne exclusivo garantindo seu espaço no mercado.
 
Livro digital e abertura de novos mercados andam de mãos dadas. Crianças são os novos consumidores em potencial desta era digital e como tais devem ser bombardeadas por novos produtos e por constantes inovações. Nesta guerra de mercado, o livro digital é o suporte mais adequado para ganhar espaço e consumidores. Na briga pela ampliação de novos mercados fica claro que os grandes grupos não podem deixar de entrar nesta competição e de colocar o foco neste novo produto que é o livro digital.
 
Porém, é aqui que reside um dos maiores nós deste mercado: o desconhecimento geral das regras deste novo negócio. Não se sabe como controlar o número de cópias vendidas, como fazer frente aos downloads free, como fazer disto um negócio rentável a ponto de justificar o enorme investimento que o livro digital pressupõe. As mesmas dúvidas ocorrem com a divulgação destes novos produtos. Como dar visibilidade a cada título nos sites de compra? Como controlar e intervir nos sites das grandes corporações detentoras da tecnologia? Como fugir das regras impostas por elas?
 
Faz décadas que a indústria editorial vem acolhendo e se moldando aos efeitos dos avanços tecnológicos e não há nenhuma novidade nisso. A indústria do livro digital é uma nova etapa deste processo, no qual estamos apenas engatinhando. Os novos formatos estão aí impondo sua força no mercado. Mas eles precisam de conteúdo, isto é, da criatividade de autores e ilustradores, do olho do editor capaz de identificar e formatar um produto, de identificar pontos fortes e estabelecer parcerias.
 
Esta ponte fundamental entre conteúdo e forma como ponto de partida foi comentada por Neal Hoskins da Wingedchariot Press, que fechou o TOC com uma frase bastante paradigmática naquelas circunstâncias: “Always remember where you come from”. Muitas podem ser as interpretações, porém no contexto no qual nos encontrávamos, a remissão ao conteúdo, à literatura como suporte essencial e ao trabalho criativo foram lembradas.
Dolores Prades é editora, gestora e consultora na área editorial de literatura para crianças e jovens. É também curadora e coordenadora do projeto Conversas ao Pé da Página - Seminários sobre Leitura e coordenadora da área de literatura para crianças e jovens da Revista eletrônica Emília - www.revistaemilia.com.br
Pequenos grandes leitores é uma coluna que pretende discutir temas relacionados à edição e ao mercado da literatura para crianças e jovens, promover a crítica da produção nacional e internacional deste segmento editorial e refletir sobre fundamentos e práticas em torno da leitura e da formação de leitores. Ela é publicada quinzenalmente, às segundas-feiras.

A literatura para crianças e jovens, um saco de gatos?

01/08/2011
 
Marcada desde as suas origens por uma forte vocação educativa que tinha como objetivo doutrinar crianças e jovens para uma vida dentro dos preceitos burgueses, muitos livros carregam até hoje esse caráter moralizante. Afinal, como afirma Teresa Colomer, os adultos sempre tiveram muito claro como devem ser os livros para crianças e jovens e nada melhor do que estes livros para formar o cidadão de amanhã, de acordo com a forma como uma determinada sociedade quer ser vista.
 
Numa relação quase natural com essa forte vocação, parte considerável desta produção fica a serviço de exigências escolares, de motivações e conteúdos que obedecem a uma lógica, na maior parte das vezes, distante do universo dos leitores. E não precisamos ir muito longe, ou voltar à era vitoriana para procurar exemplos. Basta pensar nos estragos provocados pelo pensamento contemporâneo do politicamente correto para dimensionar o grau de interferência e até mesmo de censura a que os livros podem ser submetidos.
 
Acostumada a fazer concessões ou a prestar serviço a uma causa qualquer determinada pelo mundo dos adultos, a literatura infantil e juvenil amadurece com fortes traços instrumentais. Isto quer dizer que ela não nasce e nem se desenvolve como um fenômeno estritamente literário. Esta é sem dúvida uma das principais marcas desta literatura, além de ser a única a contar sempre com a interferência de um mediador entre o livro e o leitor.
 
Este desenvolvimento não se deu numa via de mão única e o caráter instrumental conviveu sempre com outra tradição, muito mais antiga, ligada às narrativas primordiais, aos relatos medievais, responsáveis pela origem dos contos clássicos. Nesta simbiose entre maravilhoso, realidade e humanismo está uma outra vertente da literatura para crianças e jovens. Desta fonte, por exemplo, bebeu Lobato que enraizou a literatura brasileira para crianças e jovens na melhor tradição e produziu uma obra sem precedentes que marcou toda a produção literária posterior. A existência e a qualidade desta literatura não estão em questão e nem são pauta desta reflexão.
 
O que gostaria de frisar é precisamente essa ambiguidade que perpassa a história desta literatura e que pode, à primeira vista, parecer distante, mas é uma das marcas principais de nosso mercado. Quem nunca se fez a pergunta: este livro é para adoção ou para livraria? E dependendo do foco do catálogo, essa questão terá sido um critério decisivo de escolha e seleção. E quem nunca se fez, em algum momento, provavelmente escutou algo parecido de algum comercial.
 
Estamos falando de “varias literaturas”? Uma instrumental que é aceita e serve a escola e outra à margem desta? Nesta dicotomia que engloba tudo reside uma das grandes perversidades do nosso mercado de literatura infantil e juvenil. E um dos grandes equívocos conceituais sobre o entendimento do que é literatura e de seus desdobramentos.
 
O que se entende por literatura infantil e juvenil? Cabe tudo dentro de um mesmo saco? As armadilhas do mercado não deixam espaço para “sutilezas” e praticamente tudo è igualmente rotulado.
 
Enquanto essa generalização for aceita com naturalidade e continuar a se falar e produzir “literaturas” para diversos fins, as editoras estarão certamente fazendo um desserviço para a formação dos mediadores e dos futuros leitores. Hoje já se conhecem os limitados resultados da literatura utilitária escolar para a promoção leitora. Porém, vale lembrar que a adoção de livros instrumentais não pode ser vista como algo isolado. Ao contrário, a persistência deste gênero se apóia, por exemplo, em um professor não leitor, carente de história de leitura e de critérios ou parâmetros de escolha entre as diversas ofertas do mercado.
 
Outro elemento que alimenta este círculo vicioso é a cobrança social que faz com que famílias pressionem as escolas para evitar o acesso de crianças e jovens a temas considerados “inadequados. Todos eles veiculados nos horários nobres da TV e assistidos em presença de toda a família; porém sem a força ativa de reflexão e introspecção que a leitura implica e que até hoje faz dela uma atividade temida e incompreendida.
 
Isto não quer dizer que o mercado não exija livros de diferentes gêneros, como livros de informação e de conhecimento, livros de comportamento – tão na moda -, livros de fundo ético para discutir valores, livros que a partir de uma história facilitem a discussão de problemas específicos, livros fáceis de ler... Há mercado para todos, inclusive para uma linha de autoajuda infantil e juvenil.
 
No campo da literatura também há um leque de variantes: são os gêneros diversos que vão dos clássicos ao fantástico (eis um bom tema para uma próxima coluna). A distinção dos gêneros, a identificação das especificidades de cada um deles, a sua sinalização clara são, por um lado, sinais de amadurecimento do mercado. E, por outro, são instrumentos nas mãos de mediadores e de leitores cada vez mais exigentes e criteriosos.
 
Isto será o resultado de vários fatores, porém o editor tem em mãos a possibilidade de desfazer essa ambiguidade, essa dicotomia sem, com isso, perder de vista os diferentes mercados. Afinal, nada melhor do que a literatura para tomar contato com o mundo, para se por no lugar do outro, sem artificialismos e concessões. Não é isso?
 
 
Em tempo: Cecília Bajour, uma das mais importantes criticas literárias de literatura para crianças e jovens, vem para o 4º Seminário do Conversas ao Pé da Página no dia 16 de agosto, para falar junto com João Luis Ceccantini, sobre o tema “Literatura infantil e juvenil e a formação do leitor literário”, no SESC Pinheiros. Imperdível.
Dolores Prades é editora, gestora e consultora na área editorial de literatura para crianças e jovens. É também curadora e coordenadora do projeto Conversas ao Pé da Página - Seminários sobre Leitura e coordenadora da área de literatura para crianças e jovens da Revista eletrônica Emília - www.revistaemilia.com.br
Pequenos grandes leitores é uma coluna que pretende discutir temas relacionados à edição e ao mercado da literatura para crianças e jovens, promover a crítica da produção nacional e internacional deste segmento editorial e refletir sobre fundamentos e práticas em torno da leitura e da formação de leitores. Ela é publicada quinzenalmente, às segundas-feiras.

Reflexões sobre a importância da leitura (Revista Emilia)


Reflexões

  • A formação do promotor de leitura por María Beatriz Medina (Formação de Leitores)


  • Leitura e qualidade do ensino por María Beatriz Medina (Formação de Leitores)


  • Ler no aconchego do lar por Yolanda Reyes (Formação de Leitores)


  • Uma íntima confissão por Antonio Ventura (Formação de Leitores)







  • http://revistaemilia.com.br/busca.php?subtipo=Reflex%F5es

  • Como lidar com os anjos e demônios interiores

    24/10/2011
    por Leonardo Boff
    O ser humano constitui uma unidade complexa: é simultaneamente homem-corpo, homem-psiqué e homem-espírito. Detenhamo-nos no homem-psiqué, vale dizer, no seu mundo interior, urdido de emoções e paixões, luzes e sombras, sonhos e utopias. Como há um universo exterior, feito de ordens-desordens-novas ordens, de devastações medonhas e de emergâncias promissoras, assim há também um mundo interior, habitado por anjos e os demônios. Eles revelam tendências que podem levar à loucura e à morte e energias de generosidade e de amor que nos podem trazer autorealização e felicidade.
    Como observava o grande conhecedor dos meandros da psiqué humana C.G. Jung: a viagem rumo ao próprio Centro, devido a estas contradições, pode ser mais perigosa e longa do que a viagem à Lua e às estrelas.
    Há uma questão nunca resolvida satisfatoriamente entre os pensadores da condição humana: qual é a estrutura de base de nossa interioridade, de nosso ser psíquico? Muitas são as escolas de intérpretes.
    Resumindo, sustentamos a tese de que a razão não comparece como a realidade primeira. Antes dela há todo um universo de paixões e emoções que agitam o ser humano. Acima dela há inteligência pela qual intuimos a totalidade, nossa abertura ao infinito e o êxtase da contemplação do Ser. As razões começam com a razão. A razão mesma é sem razão. Ela simplesmente está aí, indecifrável.
    Mas ela remete a dimensões mais primitivas de nossa realidade humana das quais se alimenta e que a perpassam em todas as suas expressões. A razão pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada de emoção e de paixão, fato aceito pelo moderna epistemologia. A cosmologia contemporânea inclui na idéia do universo não apenas energias, galáxias e estrelas mas também a presença do espírito e da subjetividade.
    Conhecer é sempre um entrar em comunhão interessada e afetiva com o objeto do conhecimento. Apoiado por uma plêiade de outros pensadores, tenho sempre sustentado que o estatuto de base do ser humano não reside no cogito cartesiano (no eu penso, logo sou), mas no sentio platônico-agostiniano (no sinto, logo existo), no sentimento profundo. Este nos põe em contacto vivo com as coisas, percebendo-nos parte de um todo maior, sempre afetando e sendo afetados. Mais que idéias e visões de mundo, são paixões, sentimentos fortes, experiências seminais, o amor e também seus contrários, as rejeições e os ódios avassaladores que nos movem e nos põem marcha.
    A razão sensível lança suas raizes no surgimento da vida, há 3,8 bilhões de anos, quando as primeiras bactérias irromperam e começaram a dialogar quimicante com o meio para poder sobreviver. Esse processo se aprofundou a partir do momento em que surgiu o cérebro límbico, dos mamíferos, há mais de 125 milhões de anos, cérebro portador de cuidado, enternecimento, carinho e amor pela cria. É a razão emocional que alcançou o patamar autoconsciente e inteligente com os seres humanos, pois somos também mamíferos.
    O pensamento ocidental é logocêntrico e antropocêntrico e sempre colocou sob suspeita a emoção por medo de prejudicar a objetividade da razão. Em alguns setores da cultura, criou-se uma espécie de lobotomia, quer dizer, uma grande insensibilidade face ao sofrimento humano e aos padecimentos pelos quais tem passado a natureza e o planeta Terra.
    Nos dias atuais, nos damos conta da urgência de, junto com a razão intelectual irrenunciável, importa incluir fortemente a razão sensível e cordial. Se não voltarmos a sentir com afeto e amor a Terra como nossa Mãe e nós, como a parte consciente e inteligente dela, dificilmente nos moveremos para salvar a vida, sanar feridas e impedir catástrofes.
    Um dos méritos inegáveis da tradição psicanalítica, a partir do mestre-fundador Sigmund Freud, foi o de ter estabelecido cientificamente a passsionalidade como a base, em grau zero, da existência humana. O psicanalista trabalha não a partir do que o paciente pensa mas a partir de suas reações afetivas, de seus anjos e demônios, buscando estabelecer certo equilíbrio e uma serenidade interior sustentável.
    A questão toda é como nos assenhorear criativamente de nossa passaionalidade de natureza vulcânica. Freud se centra na integração da libido, Jung na busca da individuação, Adler no controle da vontade de poder, Carl Rogers no desenvolvimento da personalidade, Abraham Maslow no esforço de autorealização das potencialidades latentes. Outros nomes poderiam ser citados como Lacan, Reich, Pavlov, Skinner, a psicologia transpessoal e a cognitiva comportamental e outros.
    O que nos é permitido afirmar é que, independentemente, das várias escolas psicanalíticas e filosóficas, o homem-psiqué se vê obrigado a integrar criativamente seu universo interior sempre em movimento, com tendências dia-bólicas e sim-bólicas, destrutivas e construtivas. Por acertos e erros vamos, processualmente, descobrindo nosso caminho.
    Ninguém nos poderá substituir. Somos condenados a ser mestres e discípulos de nós mesmos.

    O artesanato do silêncio


    Palavras e imagens, ilustração e edição

    POR CECÍLIA BAJOUR
    Cecilia BajourÉ professora de letras na Universidade de Buenos Aires. Pesquisadora e mestre em literatura para crianças e jovens (Universidade Autónoma de Barcelona – Banco do livro de Venezuela – Fundación Germán Sánchez Ruipérez). Coordena e dirige cursos e seminários sobre temas relevantes a literatura infantil e leitura. Escreve regularmente na revista Imaginária e faz parte do Conselho Consultivo da EMÍLIA.


    Não dizer tudo. Insinuar. Sugerir. Calar. Mostrar pela metade. Toda a arte se vale deste delicado equilíbrio entre o dito e o não dito. Entre o que se mostra e o que se oculta.
    Nos livros que contém essa tensão entre o dito e o silêncio, vislumbra-se uma teia de decisões artísticas que têm a ver com a escrita, com a ilustração, com a edição. Em todas essas decisões há uma representação do leitor. Quanto lhe é dito e como? Quais os riscos da decisão do dizer e do mostrar para a história, o poema, a imagem? Quais as consequências para quem lê e o que se espera dele? Como fazer para que o sugerido não represente um abismo intransponível no diálogo com o leitor e sim um horizonte para onde se pode caminhar construindo sentidos? Onde está o limite que marca o excesso do dizer e do mostrar?
    Essas perguntas, cabíveis em toda manifestação artística, tornam-se especialmente necessárias quando se trata da literatura infantil e juvenil.
    Uma literatura que, em muitas ocasiões, não se incomoda com uma vasta explicação, nem com a manifestação e demonstração e, até mesmo, reiteração como formas de jogar uma rede de proteção sobre o leitor. Uma literatura que teme muito arriscar e, por isso, no equilíbrio entre o dizer e o silêncio, tende a reprimir os sentidos, a não deixá-los livres no jogo inapreensível do texto e do leitor. O medo de que ele se perca, de que ele não vá na direção prevista, tem consequências muito visivéis no artesanato dos textos e das imagens. Mas, em vez de falar das marcas do excessivamente dito ou mostrado, tentarei pensar como alguns livros constroem o que não dizem, o que  sugerem, ou o que deixam em suspenso até sua revelação.
    Mesmo que os livros ilustrados ou até alguns livros de imagens não sejam os únicos que buscam e encontram estratégias para combinar o mostrar e o ocultar (seria injusto com alguns textos maravilhosos que chegam a esse porto por outros caminhos que não necessariamente tendo a imagem como parceira), vou me referir especialmente a eles, porque nos últimos anos promoveram uma verdadeira revolução na arte de mesclar linguagens e alguns são interessantíssimos para considerar o que chamo o "artesanato do silêncio”.
    Esses livros se caracterizam por uma relação de interdependência entre imagens e palavras que se dá, não só no nível do que é dito ou mostrado, mas na esfera total do livro como objeto material e cultural. Os sentidos se constroem a partir da interação das linguagens presentes, a língua, a imagem e a edição, que  considero uma linguagem própria que, por sua vez, ajuda a orquestrar as outras. Embora o visual ganhe um relevo impactante, a palavra (quando há) não é um mero ornamento mais ou menos belo. Pensá-la como algo óbvio ou acreditar que sua tendência à brevidade (tendência que não se aplica a todos os casos) lhe subtrai hierarquia na hora de ler é desconhecer uma condição necessária desses livros.
    Nos casos mais notáveis, em que se procura sempre ultrapassar o limite do possível, há textos que constroem o não dito, ou o que é dito pela metade, por meio do jogo sutil entre a abertura do texto escrito e da ambiguidade da imagem.
    Pode parecer estranho falar em silêncio quando a palavra, a imagem ou a materialidade do livro parecem estar falando. No entanto, "explorando como as coisas vistas assinalam para as que não são vistas", como afirma o especialista Douglas Thorpe, é possível perceber a textura do que é sugerido ou do que se oculta.
    Para refletir sobre como se constrói essa tensão entre o dito e o sugerido, ou não dito, em alguns livros ilustrados principalmente, mas não só neles, proponho mostrar três maneiras de fazê-lo, com três exemplos.

    * * *
     A primeira tem a ver com as palavras. A ambiguidade própria de algumas delas é uma das formas de apresentar um vazio ou uma elipse que faz o olhar disparar como uma flecha para a ilustração, doadora de uma aparência possível, de um destino entre outros. Nesse sentido, os pronomes impessoais ou neutros são palavras cheias de silêncio, palavras ávidas de sentidos que por si sós não podem gerar. Sua interdependência com a imagem, sua relação de “relevo", nas palavras de Barthes, é essencial.
    O livro Uno y Otro, de Maria Wernicke, é um exemplo claro disto, uma vez que os protagonistas são os impessoais (além de Um e Outro, os personagens são Nenhum, Todos e Alguém).
    uno y otro 1
    "Um tem o seu mundo."
    uno y otro 2
    "Outro o é dele.”

    O encantador de palavras


    O encantador de palavras
    Regina Ribeiro - O Povo Online - 17/09/2011
    O diretor de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do Ministério da Cultura/Fundação Biblioteca Nacional, Fabiano dos Santos  é um cearense que desde menino gosta das palavras. Ouvia histórias da avó, da mãe e do pai. Mais tarde, se tornou escritor. No Ceará, foi um dos responsáveis pelo projeto Agentes da Leitura, que se transformou num programa nacional, em parceria com estados e municípios. Em Fortaleza, o edital para seleção dos agentes da leitura está com inscrições abertas até 13 de outubro.

    Fabiano dos Santos anuncia mais duas novas bibliotecas para cidade, em parceria com a Seculftor. Fortaleza é uma das cidades com uma estatística crítica: tem apenas uma biblioteca pública municipal para cada 1 milhão de habitantes. Ele anuncia ainda cinco editais com bolsas para escritores e projetos de leitura. Em passagem por Fortaleza para participar da II Feira do Livro Infantil, Fabiano concedeu a seguinte entrevista ao O POVO.

    O POVO. Como você se tornou um leitor e mais tarde escritor?Fabiano - Eu tinha uma avó que contava histórias encantando as palavras, um pai que conta histórias sem medir as palavras e uma mãe que lê nas entrelinhas das palavras. Aquilo me encantava e foi vital na minha formação leitora. Tomava suas vozes emprestadas. Mãe lia para a gente dormir, Vó contava para a gente acordar para o mundo e Pai narrava suas aventuras como se sua vida fosse um romance de cordel. Queria ser poeta e fui me tornando leitor assim, embrenhando-se no mundo que mora dentro e fora das palavras. Pois sou daqueles que acreditam que as palavras podem fazer coisas com a gente, mas que também podemos fazer coisas com as palavras. Agora estou em stand-by. O escritor só vai sair da gaveta, depois que deixar o cargo e essa travessia provisória como Diretor de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do MinC/FBN.

    OP -  Aqui no Ceará, você foi um dos responsáveis pelo projeto Agente de Leitura que se tornou um projeto nacional do Ministério da Cultura. Qual o impacto que esse tipo de projeto tem no real hábito de leitura das comunidades?
    Fabiano - O Ceará tem uma história de pioneirismo interessante. Primeira academia de letras do país, primeira província a abolir a escravidão, primeiro estado a instituir o Selo UNICEF. Aqui nasceu os Agentes Comunitários de Saúde e, bem depois, em 2006, os Agentes de Leitura da Secretaria de Cultura do Estado. Ambos se transformaram em política pública nacional. No caso dos Agentes de Leitura estamos apenas no começo do programa do MinC numa parceria com os ministério da Educação e Desenvolvimento Social. O que posso destacar em linhas gerais é que os Agentes de Leitura atuam nos três ambientes vitais para a formação de leitores: a família, a escola e a biblioteca pública. Trata-se de uma política pública integrada de cultura, educação, juventude e inclusão social. Que impactos podemos esperar? A qualificação profissional de jovens entre 18 e 29 anos por meio de formação continuada; a geração de trabalho e renda através da bolsa de formação de R$ 350,00 para os agentes; a criação de ambientes favoráveis para fruição cultural e formação de leitores por meio de socialização de acervos literários nas famílias, bibliotecas e escolas.

    Agentes de Leitura criam ambientes favoráveis para a formação de leitores dentro das casas, nos seios das famílias e nas vidas das pessoas. Isso impacta diretamente no processo de aprendizagem escolar das crianças atendidas. Verificamos  esse resultado no projeto dos Agentes de Leitura do Ceará. Agora, vamos aprimorar a mediação desse impacto numa parceria de avaliação dos resultados com o MEC e o IPEA, da Secretaria de Assuntos Estratégicos.

    OP - Atualmente, o projeto está espalhado por vários municípios. Aqui no Ceará os Agentes da Leitura envolvem quase meio milhão de reais? Quando o projeto começa efetivamente?
    Fabiano - Todos os editais são realizados pelos estados e municípios conveniados. Trata-se de um investimento global de 28,0 milhões, sendo 20,0 milhões do MinC/MEC e 8,0 milhões de contrapartida dos estados e municípios para a formação e atuação de 4000 Agentes de Leitura em torno de 400 cidades distribuídas pelo Acre, Bahia, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo. Em Fortaleza, o edital com a Secultfor está aberto até o dia 13 de outubro para jovens entre  18 e 29 anos, que tem o ensino médio completo e que moram nos bairros Barra do Ceará, Pirambu, Serviluz, Titanzinho, Autran Nunes, Maria Tomásia e Jangurussu.

    OP - Fortaleza ganhará mais duas Bibliotecas. Como é esse projeto? 
    Fabiano - São bibliotecas de referência. Esse projeto de construção de bibliotecas públicas partiu de estudo comparativo que a Diretoria do Livro, Leitura e Literatura realizou em torno da proporção do número de bibliotecas existentes com a população das grandes cidades brasileiras. Temos uma cidade como Curitiba que tem uma média de uma biblioteca para cada 35 mil habitantes, e cidades como Recife, Manaus, Belém, Salvador, Fortaleza que essa proporção chega ao extremo de uma biblioteca pública municipal para 1 milhão de habitantes. A partir disso, elegemos seis capitais com essa proporção mais crítica e procuramos seus gestores para viabilizarmos o projeto de construção de bibliotecas nas periferias. De imediato a prefeita Luiziane Lins e a Secretária de Cultura Fátima Mesquista  incorporaram o projeto e estão sendo construídas duas bibliotecas: uma no Conjunto Ceará e a outra no Autran Nunes. Essas bibliotecas são de pequeno porte, mas partem do princípio de centros culturais dinâmicos e de interação com as comunidades. Isso, desde o inicio do processo.

    OP - A presidente Dilma assinou o decretou que cria o Plano Nacional de Livro e Leitura – PNLL. O que isso significa na prática e como vai funcionar o Fundo Pró-Leitura?Fabiano -  Nós temos uma Presidente que leu Dostoievsky e que reconhece o papel que o livro e a literatura exerceram na sua formação e exercem em sua vida. Portanto, além da função simbólica que foi a assinatura do Decreto, temos a inserção da política de livro e leitura na agenda presidencial. Também  significa um avanço enorme em torno da institucionalização das políticas públicas de livro e leitura no país. Antes o Plano era uma portaria interministerial do MinC e do MEC. Não podemos pensar em políticas publicas sem seus marcos legais. Daí, que o próximo passo, como a própria Presidenta assinalou na ocasião da assinatura do decreto, será o envio para o Congresso Nacional para que seja aprovado enquanto lei. Mas isso tudo só fará sentido e terá êxito, se for uma construção social e coletiva envolvendo vários atores, onde estado e sociedade atuem integrados nesse processo.

    OP - Há 10 anos o número de encontros literários no País cresceu numa velocidade muito maior do que o número de leitores. Por outro lado, o mercado editorial se mostra aquecido. É uma conta que não fecha. O que acontece com esse cenário?
    Fabiano - Em entrevistas recentes, dois grandes editores brasileiros lamentavam que o mercado editorial brasileiro produz muito mais do que consegue vender. Mesmo assim, há uma produção elevadíssima e o mercado continua em expansão. Embora se produza mais do que se comercializa, o setor continua aquecido, aumentando sua produção e faturamento anual. Segundo a última pesquisa da FIPE (Fundação Fabiano - Instituto de Pesquisas Econômicas), foram produzidos em torno de 23% a mais de livros do que em 2009. No entanto, o crescimento em cópias vendidas foi de 13%. Como não tem havido queda no faturamento, o mercado vem se comportando assim, produzindo mais do que pode consumir. Parece que virou uma ciranda louca de lançamentos intermináveis movidos pela necessidade da novidade que nasce para disputar as vitrines das grandes livrarias, na velha lógica de publicar em excesso para que os sucessos editorias possam compensar os fracassos que ficam encalhados, acumulando os espaços dos armazéns das editoras ou esperando para serem transformados em aparas. Enquanto isso, embora a mesma pesquisa tenha apontado uma queda no preço do livro, ele ainda é muito caro, quase inacessível para a classe C que vem aumentando seu poder aquisitivo.

    O mais curioso das entrevistas com os dois grandes editores, é que nenhum deles apontou a questão da leitura e da formação de leitores. Restringiram suas análises à lógica do mercado (produção, distribuição, comercialização, estocagem) e constataram a superprodução. É como se o mercado se satisfizesse com o público leitor no país que não passa de 25% ou de um público consumidor de livros que é menor ainda. Isso para mim tem nome: miopia. Ou se preferirem, falta de visão estratégica de desenvolvimento e de compromisso social do setor privado com a construção de uma nação de leitores.

    Por essa razão, ao mesmo tempo em que o Governo Federal está lançando o programa do Livro Popular, – que será gerido pela Fundação Biblioteca Nacional com o objetivo de fomentar a produção e comercialização de livros a preços acessíveis (no máximo de R$ 10,00) nas livrarias e pontos de vendas diretos ao público consumidor – está ampliando também os programas de incentivo à leitura, como o PROLER e os Agentes de Leitura. Então, penso que uma política pública não pode se resumir ao L de livro. Ela tem que abranger com o L de leitura, L de literatura, L de leitor
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    A formação do promotor de leitura


    A formação do promotor de leitura
    A experiência do Banco do Livro da Venezuela
    POR MARÍA BEATRIZ MEDINA
    maria beatriz medina
    María Beatriz Medina nasceu na Venezuela. Formada em letras, autora, mediadora, pesquisadora na área de leitura e literatura infantil, professora, e consultora. Atualmente participa da Comissão Executiva do Banco do Livro, é presidente da filial venezuelana do IBBY e membro do Conselho de Sinergia, uma rede de associações da sociedade civil venezuelana.



    Por que e para que promover leitura?
    A experiência do Banco do Livro da Venezuela desenvolve-se – pode-se dizer – como a espiral de uma formação constante, que se consolidou na última década, quando se abriram as comportas de ampliação e articulação de um programa de formação de uma experiência institucional. Experiência baseada no fazer e na reflexão, incorporando projetos pilotos de modelos de bibliotecários transferidos às instituições públicas, assim como propostas inovadoras de pesquisa, formação, publicação, associadas a ações de promoção da leitura. A formação de mediadores (professores, bibliotecários, pais e adultos em geral que trabalham com crianças) foi essencial ao longo de toda a vida institucional do Banco, vida que no amanhecer deste século XXI tentamos redimensionar com uma proposta integral, que incorpora modalidade presencial e a distância.
    No ano 2000, quando iniciamos um curso de formação integral de promotores de leitura, nos fazíamos duas perguntas: Por que e para que promover a leitura? Por que e para que formar mediadores de leitura?
    Parece que hoje as respostas a essas perguntas apontam na mesma direção. Perguntas e respostas permanecem válidas, pois estamos imersos em um mundo em que a leitura parece ter deixado de ter o significado e a aceitação de outros tempos ‑ o mundo contemporâneo propõe novas aproximações, o que exige uma reavaliação do ato de ler.
    Na tentativa de responder à primeira pergunta, poderíamos dizer que ainda se faz necessário promover a leitura por várias razões:
     Primeiro, porque não atingimos totalmente o objetivo de democratizar nem a leitura nem a formação de leitores críticos. Isso permanece como um objetivo, uma vez que nem todos temos acesso a informação e não se pode falar com propriedade de massificação de competências leitoras, que potecializam as aproximações críticas.
     Segundo, porque parece que a leitura banalizou-se e deixou de ter percepção e projeção positivas. Teríamos que recuperar essa representação culturalmente positiva da leitura ou re-significá-la, como diria Graciela Montes.
    A condição social da leitura parece exigir sua materialidade em todos os sistemas sociais: na forma de decisões políticas, quando se trata do Estado, e no modo de fazer, quando se está em âmbito escolar, comunitário, comunicacional e familiar. As políticas públicas de leitura configuram o compromisso e a articulação de um trabalho conjunto dos sujeitos desses sistemas sociais, que deverão considerar cenas, espaços, tempo e materiais de leitura. O mediador tem um grande compromisso com essa tarefa, uma vez que é obrigado a ter uma formação continua, a refletir sobre diferentes aspectos em torno da tarefa de formar leitores, além de abordar várias linhas de pesquisa como uma espécie de neo-renascentista, capaz de ter uma visão integral do processo de leitura, sua promoção e a formação de leitores, assim como compreender as formas em que se insere em uma complexa estrutura social, que cada vez mais exige um trabalho em equipe.
    A premissa desse trabalho integrado, sem dúvida, permaneceu até agora no âmbito discursivo, pois não se concretizou totalmente na prática. Nesse sentido, as perguntas que abriram espaço para a reflexão do por que e para que promover leitura, por que e para que formar leitores, segue vigente.
    A falta de materialização, na prática, do discurso sobre leitura se dá não só por falta de articulação, como também pelo fato de que se trata de uma área permeada de vulnerabilidade, o que não torna possível multiplicar cenas de leitura no âmbito familiar; nem promover tempo e espaços de leitura suficientes nas escolas ou nos arredores dela; nem dimensionar os sistemas de bibliotecas em função das necessidades; nem conseguir que todos tenham acesso ao livro e a outros materiais de leitura e, sobretudo, o apoio institucional não tem sido suficiente para conseguir a promoção social da leitura. A responsabilidade é dividida e não nos esquivamos da nossa cota.

    Revista Emilia, para quem gosta de ler e incentivar a leitura

    sábado, 22 de outubro de 2011

    O leitor, onde está o leitor?



    O leitor, onde está o leitor?
    Affonso Romano de SantAnna - 20/10/2011
    O Estado de S.Paulo - 15 de outubro de 2011
    Os editores brasileiros revelam que estão publicando livros "demais". Isto é uma verdade ou um mal- entendido? Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras disse a este caderno que publica 280 títulos por ano e que "não dá para crescer mais com obras de mercado, até porque o mercado está muito competitivo. (…). Há editoras que hoje não conseguem entrar em redes de livrarias com um exemplar de algum título. Há uma superprodução. De livros, escritores, editores, um número de editoras grande surgindo".

    Sergio Machado, do Grupo Editorial Record, informou, também aqui, que em 2010 o Brasil editou 55 mil títulos, numa média de 210 obras por dia. Só a própria editora Record, comentou, coloca no mercado 80 títulos por mês. Seu proprietário revelou que tem 2 milhões de livros em galpões que lhe custam uma despesa alta.

    Eis uma crise paradoxal. De excesso e de carência. Excesso de livros ou carência de leitores? Assim como um copo com metade de água pode ser visto como um espaço metade cheio ou metade vazio, permitam-me examinar a questão por outro ângulo, fazendo uma correção: o Brasil não produz livros "demais", o Brasil produz leitores de menos. Há que "produzir" o leitor. E não estou falando de alfabetização. Essa cadeia do livro não existe sem o destinatário: o leitor. Não há excesso de livros, há falta de bibliotecas, de livrarias e de leitores. Há, por outro lado, centenas de iniciativas governamentais e particulares tentando corrigir isto. Todos, não só os editores, temos que modificar o conceito de livro, livraria, biblioteca, leitor e leitura, pois na verdade todo esse sistema em torno do livro está em crise (ou "metamorphose").

    Mas que crise é essa? Vejamos.

    Crise, leitura e o pré-sal. Falar de leitura é uma auspiciosa novidade. Na década de 20 do século passado, Monteiro Lobato fundou uma editora brasileira e a literatura infantil. Com Borba de Morais e Mário de Andrade, na década de 30 redescobriu-se a biblioteca pública. Na mesma época o governo federal criou o Instituto Nacional do Livro pensando em editar uma enciclopédia e livros. Nos anos 50, Paulo Freire reinventou a alfabetização fazendo um plantador de cana aprender a ler em 45 dias.

    Mas o conceito de leitura sempre esteve oculto, era o não-dito.

    Leitura não se limita à "alfabetização". Leitura não se limita à escola: trata-se de formar uma sociedade leitora, para o País enfrentar os desafios do século 21. Só em 1992 é que através do Proler pensou-se em implementar uma Política Nacional de Leitura. E desde 2006 que o PNLL (Plano Nacional do Livro e da Leitura) insiste numa política de leitura que atravesse todos os ministérios e seja uma determinação da Presidência da República. A rigor se poderia dizer: leitura é uma questão de segurança nacional.

    Considerada a leitura como algo além da escola, algo além da alfabetização, algo que vai lidar com o "analfabetismo funcional" e com o "analfabetismo tecnológico", haverá (como já começa a haver) programas de leitura em hospitais, quartéis, fábricas, sindicatos, empresas, tribos indígenas, igrejas, condomínios, acampamentos agrários, comunidades quilombolas, favelas, programas para aposentados e programa para cegos, surdos, mudos e outros deficientes físicos, etc.

    Nos últimos anos, "agentes de leitura" e "mediadores de leitura" se espalharam pelo Brasil. A experiência positiva dos agentes de leitura no Ceará foi levada para o Ministério da Cultura e expande-se em vários Estados. No Acre foram criadas mais de cem Casas da Leitura interagindo com uma nova maneira de ler a cultura e a natureza. Os agentes ou mediadores de leitura devem chegar a 15 mil brevemente e têm sido treinados por instituições como a Cátedra de Leitura da PUC-RJ. O ideal é que se mesclem com os "agentes de saúde" e os "médicos de família".

    Nessa redescoberta da leitura, onde havia apenas o Instituto Nacional do Livro, espera-se a criação do Instituto do Livro, da Leitura e da Biblioteca e a nova administração da Fundação Biblioteca Nacional planeja construir 25 mil bibliotecas populares com livro de qualidade a 10 reais.

    Enfim, a leitura é o verdadeiro pré-sal. O petróleo em si não resolve os problemas básicos de um país. Há países que têm petróleo e têm terríveis desigualdades sociais e opressão política. Ha países que não têm petróleo e estão na ponta do processo civilizatório. E todos os países que realmente se desenvolveram passaram pela leitura. A leitura torna os livros vivos e desenvolve os países.

    Torna-se irrecusável contar uma história verdadeira que narrei na recente Jornada Literária de Passo Fundo (agosto/2011), quando Alberto Manguel e Kate Wilson debatiam equivocamente sobre esse tema. Diz-se que o Marechal Rondon, no princípio do século passado, foi designado para conquistar grande parte do território brasileiro levando a comunicação através de postes e fios que conduziam mensagens telegráficas. Depois de ter instalado praticamente em todo o País esse sistema de comunicação, ao colocar o último poste na fronteira da Bolívia foi surpreendido com a notícia de que Marconi havia acabado de descobrir o telégrafo sem fio.

    Cem anos depois a situação se repete. Conseguiremos fazer na era do livro eletrônico o que não conseguimos fazer na era do livro impresso?

    Se não conseguimos em 500 anos colocar uma biblioteca em cada canto do País, por outro lado, cada cidadão está se convertendo, à revelia de nossa incompetência histórica em um "consumidor" de informação através da informática, do Google, da internet. Se temos apenas 2.600 livrarias e 2.500 cinemas, é bom que nos espantemos e nos rejubilemos com o fato de que temos 109.000 lan-houses e que só uma favela como a da Rocinha, que tem apenas uma biblioteca heroicamente construída e seguramente não possui nenhuma livraria, tem, por outro lado, 200 lan-houses.

    Inclusão digital. Tem-se falado muito de "inclusão digital". O Ministério da Comunicação (Gesac) informa que "telecentros" estão sendo implantados em todo o País e já existem 13.379 em 5.564 municípios. Eles podem ter o papel que as bibliotecas convencionais deveriam ter tido. Os "promotores de inclusão digital" são irmãos gêmeos dos recentes "agentes de leitura" ou "agentes de cultura". Os telecentros oferecem 6.200 kits do MC às prefeituras. O telefone portátil, o iPad e o Google são uma realidade. Os 200 milhões de telefones portáteis são 200 milhões de bibliotecas em potencial à espera de nossa criatividade. Assim como um viajante do século 18 tinha uma maleta de viagem em que carregava algumas dezenas de livros para ler, hoje pela internet todos podem ter uma biblioteca em suas mãos, seja nas margens do Tocantins ou no Sul do País.

    O Brasil está vivenciando três fatos novos: 1) A invasão da eletrônica em nossa vida cotidiana, nos jogando em outra era. 2) O surgimento de outras gerações chamadas de X, Y, Z, pelos especialistas em marketing: jovens que vivem zapeando. São "dispersivos", fazem várias coisas ao mesmo tempo, não têm o sentido de "concentração" unidirecional que era a nossa. Nós os achamos superficiais. Mas e se estivermos realmente diante de um fenômeno de mutação não exatamente genética, e sim cultural? Um daqueles momentos de "point of no return" que remete para a metáfora que McLuhan usou: a lagarta assustada olhando uma borboleta em seu esplendor, dizia: "Eu nunca me transformarei num monstro daqueles...".

    3) A emergência das classes C, D e E que até agora estavam fora do mercado, da comunicação e da cultura livresca. Quando a gente fala de classe C, falamos de um século de exclusão, sem saúde, sem saber o que é política.

    Lembremos: o aprendizado já foi oral - o essencial era o uso da memória. Com a evolução, o saber passou a ser escrito. Hoje, passa pelo visual. Ou pode-se dizer, é oral, é escrito e também visual. O oral, o escrito e o visual se complementam.

    Em algumas ocasiões tenho dito que, provavelmente, somos a última geração letrada. Gostaria de estar equivocado, que o futuro me desmentisse. Ou que descobrisse, descobríssemos formas novas de ler. Se olharmos a história do Brasil podemos detectar três momentos culturais e econômicos relevantes que nos forçam a uma decisão crucial no presente:

    1) A febre do ouro e da pedras preciosas ocorreu quando éramos colônia e essa riqueza escoou para os cofres dos dominadores.

    2) Tendo perdido essa chance, perdemos também a chance da revolução industrial nos séculos 18 e 19, porque aqui predominava a escravidão, a cultura agrária e a coroa brasileira era apenas cliente dos produtos industrializados europeus.

    3) Estamos diante da revolução digital. Se perdemos as duas revoluções anteriores, hoje há algumas coincidências: a revolução digital chega com a avassaladora globalização, no momento em que o Brasil autossuficiente de petróleo incorpora outras classes e descobre o pré-sal.

    Repito, para terminar: o verdadeiro pré-sal é a cultura e/ou a leitura. Os animais, os peixes, as árvores e até as bactérias leem constantemente o mundo antes de tomarem qualquer decisão. Por que o ser humano insiste em andar às cegas no universo da comunicação?

    AFFONSO ROMANO DE SANT"ANNA É ESCRITOR, EX-PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, CRIADOR DO PROLER (PROGRAMA NACIONAL DE INCENTIVO À LEITURA), DO SISTEMA NACIONAL DE BIBLIOTECAS, E EX-SECRETÁRIO GERAL DA ASSOCIAÇÃO DE BIBLIOTECAS NACIONAIS IBERO AMERICANAS, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE SÍSIFO DESCE A MONTANHA (POESIA, ROCCO)



    minha fonte: 
    http://www.blogdogaleno.com.br/texto_ler.php?id=10728&secao=13