Domingo de Circo
Toda tua chegada nessa radiosa manhã de domingo embandeirada de infância. Solene e festivo circo armado no terreno baldio do meu coração.
As piruetas do palhaço são malabaristas alegrias na vertigem de não saber o que faço.
Rugem feras em meu sangue; cortam-me espadas de fogo.
Motos loucas de globo da morte, rufar de tambores nas entranhas, anúncio espanholado de espetáculo, fazem de tua chegada minha sorte.
Domingo redondo aberto picadeiro, ensolarado por tão forte ardor, me refunde queima alucina:
olhos vendados,
sem rede sobre o chão,
atiro-me do trapézio
em teu amor.
Do livro A Arte de Semear Estrelas, de Frei Betto.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Pontos para uma gestão cultural transformadora (parte 1)


Pontos para uma gestão cultural transformadora (parte 1)

Por Célio Turino

1 – Cultura como filosofia de governo

Apontar a centralidade da cultura nos programas de governo, tanto federal, como estaduais e municipais, não é fácil. Esse reconhecimento não significa deixar de lado compromissos específicos, sejam eles de atendimento a comunidades (moradores de determinadas regiões, recorte étnico, de gênero, de classe ou etário) ou temáticos, como habitação, saneamento, transportes. Eles continuam no foco, mas com uma abordagem cultural. É possível imaginar a formulação de uma Cultura de Paz (prefiro este conceito a formulações como “Cultura e Lazer para combater a violência”) sem a construção e desenvolvimento de ações de convivência, lazer e cultura? Ou um trânsito civilizado sem uma cultura de respeito ao pedestre, sem respeito à vida?

Uma das principais realizações do governador Cristóvão Buarque em Brasília foi o programa Educação no Trânsito. Quem visita a cidade e circula a pé por suas quadras entenderá o que estou dizendo; basta pisar na faixa de pedestre ou levantar o braço pedindo passagem que os carros param. Um sopro de civilidade e cultura na capital do país. Isso acontece em Brasília, uma obra de trânsito que não precisou de viadutos ou túneis, e que reverteu uma situação em que o Distrito Federal figurava como o campeão de mortes violentas no trânsito. Mesmo com a mudança de governo esta obra permanece até hoje. Permanece porque entrou no espírito do povo. Uma obra cultural, portanto.

Foi na gestão do prefeito Jacó Bittar (Campinas, 1989-92) que utilizamos o termo “cultura como filosofia de governo” pela primeira vez. Em seu mandato, realizamos várias ações neste sentido, políticas públicas com caráter cultural, alterando comportamentos de toda uma cidade. O Passe-Passeio (passe livre no transporte público em dois domingos por mês), momentos em que toda a população se movia livremente, fosse para visitar parentes ou atividades culturais, esportivas e de lazer. Dias de convivência e integração cidadã. Uma política aplicada pela secretaria de transportes, que tinha a cultura como motivação. Também a campanha “Um Milhão de Árvores”, estimulando todos os moradores, quase um milhão, a plantarem árvores. “Se cada um plantar uma só, a gente planta um milhão” (na São Paulo de hoje a campanha poderia ser dos onze milhões de árvores) era o mote de uma ação desenvolvida pela secretaria do Meio Ambiente e que, para dar certo, dependia de uma mudança na atitude cultural das pessoas. Sei que em inúmeros outros lugares, cidades, estados ou países, há diversos outros exemplos, que tratarei em artigos futuros, como as experiências de Cultura Cidadã, em Medellin, na Colômbia. Vale encontrar essas experiências para desenvolver programas de governo e políticas públicas com caráter mais arrojado e reconhecer que, quando a cultura transversaliza as ações de governo, as mudanças são mais profundas.

A cultura permeia todas as ações da sociedade e, como consequência, todas as políticas públicas e programas de governo. Cultura é comportamento, se manifesta nas mínimas relações do cotidiano, é postura frente ao mundo. A auto-organização do povo para compras comunitárias ou cooperativas de habitação é cultura; sua conformidade em enfrentar filas, maus cheiros, desrespeitos e humilhações é cultura; sua resistência, seu modo de encarar adversidades é cultura; sua luta, individual ou coletiva, é cultura. É pela cultura que nos superamos e a proposta de desafio à classe trabalhadora e à sociedade civil deste país deve vir por meio da reflexão crítica de suas próprias demandas; redefinindo símbolos, ideias, valores e comportamentos; definindo um projeto de cidade, estado ou nação que tem na cultura a sua base. É com a cultura que um povo pode dar um salto no refazer da solidariedade, no direito à apropriação de sua memória e no conhecimento da importância do seu papel transformador.

Assim, cabe desenvolver programas de conhecimento e descoberta das cidades, das regiões e do país (turismo social); realizar eventos de lazer, cultura e esportes que promovam a paz e o congraçamento entre cidadãos. Vale lembrar que a violência urbana tem inúmeras matrizes, e uma delas é a ausência de lazer, de perspectivas para o tempo livre, cultivar a mente de forma emancipadora. Nos bairros pobres das grandes cidades não existem áreas verdes; quando muito um “raspadão”, campo precário, sem grama, para jogar futebol aos finais de semana. E, mesmo assim, um espaço de lazer apenas para homens, do mesmo modo que bares e mesas de bilhar. Às crianças, mulheres e idosos sobram a televisão e as ruas, quando muito; aos jovens nem isso; aos jovens sobra a falta de perspectivas.

Cultura como filosofia de governo gera renda, é social e amplia horizontes. A cultura integra ações, dá sentido às realizações e reformas dos governos. É a cultura o fio condutor que une o direito à saúde, ao transporte, à moradia, à escola, ao trabalho… à cidadania. É com a cultura, e só com ela, que conduziremos nossa sociedade a uma democracia substantiva, colocando as pessoas no caminho da emancipação humana e avançando em nosso processo civilizador.

Célio Turino é historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Servidor Público há mais de 30 anos, exerceu funções como Secretário de Cultura e Turismo em Campinas,SP (1990/92), Diretor de Promoções Esportivas e Lazer em São Paulo, SP (2001/04) e Secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004/10). Idealizador e gestor de diversas políticas públicas inovadoras, entre elas o programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura, atualmente em processo de implantação em diversos países. Autor e organizador de inúmeros livros e ensaios, entre os quais: NA TRILHA DE MACUNAÍMA – ócio e trabalho na cidade (Ed. SENAC, 2005) e PONTO DE CULTURA, o Brasil de baixo para cima (Ed. Anita Garibaldi, 2009). Este é o primeiro texto de uma série de cinco artigos sobre políticas públicas para a cultura, adaptados do livro “Ponto de Cultura – o Brasil de baixo para cima” (Ed. Anita Garibaldi, 2009). Célio estreia com a série sua coluna no SPressoSP e na Revista Fórum

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