Domingo de Circo
Toda tua chegada nessa radiosa manhã de domingo embandeirada de infância. Solene e festivo circo armado no terreno baldio do meu coração.
As piruetas do palhaço são malabaristas alegrias na vertigem de não saber o que faço.
Rugem feras em meu sangue; cortam-me espadas de fogo.
Motos loucas de globo da morte, rufar de tambores nas entranhas, anúncio espanholado de espetáculo, fazem de tua chegada minha sorte.
Domingo redondo aberto picadeiro, ensolarado por tão forte ardor, me refunde queima alucina:
olhos vendados,
sem rede sobre o chão,
atiro-me do trapézio
em teu amor.
Do livro A Arte de Semear Estrelas, de Frei Betto.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A literatura para crianças e jovens, um saco de gatos?

01/08/2011
 
Marcada desde as suas origens por uma forte vocação educativa que tinha como objetivo doutrinar crianças e jovens para uma vida dentro dos preceitos burgueses, muitos livros carregam até hoje esse caráter moralizante. Afinal, como afirma Teresa Colomer, os adultos sempre tiveram muito claro como devem ser os livros para crianças e jovens e nada melhor do que estes livros para formar o cidadão de amanhã, de acordo com a forma como uma determinada sociedade quer ser vista.
 
Numa relação quase natural com essa forte vocação, parte considerável desta produção fica a serviço de exigências escolares, de motivações e conteúdos que obedecem a uma lógica, na maior parte das vezes, distante do universo dos leitores. E não precisamos ir muito longe, ou voltar à era vitoriana para procurar exemplos. Basta pensar nos estragos provocados pelo pensamento contemporâneo do politicamente correto para dimensionar o grau de interferência e até mesmo de censura a que os livros podem ser submetidos.
 
Acostumada a fazer concessões ou a prestar serviço a uma causa qualquer determinada pelo mundo dos adultos, a literatura infantil e juvenil amadurece com fortes traços instrumentais. Isto quer dizer que ela não nasce e nem se desenvolve como um fenômeno estritamente literário. Esta é sem dúvida uma das principais marcas desta literatura, além de ser a única a contar sempre com a interferência de um mediador entre o livro e o leitor.
 
Este desenvolvimento não se deu numa via de mão única e o caráter instrumental conviveu sempre com outra tradição, muito mais antiga, ligada às narrativas primordiais, aos relatos medievais, responsáveis pela origem dos contos clássicos. Nesta simbiose entre maravilhoso, realidade e humanismo está uma outra vertente da literatura para crianças e jovens. Desta fonte, por exemplo, bebeu Lobato que enraizou a literatura brasileira para crianças e jovens na melhor tradição e produziu uma obra sem precedentes que marcou toda a produção literária posterior. A existência e a qualidade desta literatura não estão em questão e nem são pauta desta reflexão.
 
O que gostaria de frisar é precisamente essa ambiguidade que perpassa a história desta literatura e que pode, à primeira vista, parecer distante, mas é uma das marcas principais de nosso mercado. Quem nunca se fez a pergunta: este livro é para adoção ou para livraria? E dependendo do foco do catálogo, essa questão terá sido um critério decisivo de escolha e seleção. E quem nunca se fez, em algum momento, provavelmente escutou algo parecido de algum comercial.
 
Estamos falando de “varias literaturas”? Uma instrumental que é aceita e serve a escola e outra à margem desta? Nesta dicotomia que engloba tudo reside uma das grandes perversidades do nosso mercado de literatura infantil e juvenil. E um dos grandes equívocos conceituais sobre o entendimento do que é literatura e de seus desdobramentos.
 
O que se entende por literatura infantil e juvenil? Cabe tudo dentro de um mesmo saco? As armadilhas do mercado não deixam espaço para “sutilezas” e praticamente tudo è igualmente rotulado.
 
Enquanto essa generalização for aceita com naturalidade e continuar a se falar e produzir “literaturas” para diversos fins, as editoras estarão certamente fazendo um desserviço para a formação dos mediadores e dos futuros leitores. Hoje já se conhecem os limitados resultados da literatura utilitária escolar para a promoção leitora. Porém, vale lembrar que a adoção de livros instrumentais não pode ser vista como algo isolado. Ao contrário, a persistência deste gênero se apóia, por exemplo, em um professor não leitor, carente de história de leitura e de critérios ou parâmetros de escolha entre as diversas ofertas do mercado.
 
Outro elemento que alimenta este círculo vicioso é a cobrança social que faz com que famílias pressionem as escolas para evitar o acesso de crianças e jovens a temas considerados “inadequados. Todos eles veiculados nos horários nobres da TV e assistidos em presença de toda a família; porém sem a força ativa de reflexão e introspecção que a leitura implica e que até hoje faz dela uma atividade temida e incompreendida.
 
Isto não quer dizer que o mercado não exija livros de diferentes gêneros, como livros de informação e de conhecimento, livros de comportamento – tão na moda -, livros de fundo ético para discutir valores, livros que a partir de uma história facilitem a discussão de problemas específicos, livros fáceis de ler... Há mercado para todos, inclusive para uma linha de autoajuda infantil e juvenil.
 
No campo da literatura também há um leque de variantes: são os gêneros diversos que vão dos clássicos ao fantástico (eis um bom tema para uma próxima coluna). A distinção dos gêneros, a identificação das especificidades de cada um deles, a sua sinalização clara são, por um lado, sinais de amadurecimento do mercado. E, por outro, são instrumentos nas mãos de mediadores e de leitores cada vez mais exigentes e criteriosos.
 
Isto será o resultado de vários fatores, porém o editor tem em mãos a possibilidade de desfazer essa ambiguidade, essa dicotomia sem, com isso, perder de vista os diferentes mercados. Afinal, nada melhor do que a literatura para tomar contato com o mundo, para se por no lugar do outro, sem artificialismos e concessões. Não é isso?
 
 
Em tempo: Cecília Bajour, uma das mais importantes criticas literárias de literatura para crianças e jovens, vem para o 4º Seminário do Conversas ao Pé da Página no dia 16 de agosto, para falar junto com João Luis Ceccantini, sobre o tema “Literatura infantil e juvenil e a formação do leitor literário”, no SESC Pinheiros. Imperdível.
Dolores Prades é editora, gestora e consultora na área editorial de literatura para crianças e jovens. É também curadora e coordenadora do projeto Conversas ao Pé da Página - Seminários sobre Leitura e coordenadora da área de literatura para crianças e jovens da Revista eletrônica Emília - www.revistaemilia.com.br
Pequenos grandes leitores é uma coluna que pretende discutir temas relacionados à edição e ao mercado da literatura para crianças e jovens, promover a crítica da produção nacional e internacional deste segmento editorial e refletir sobre fundamentos e práticas em torno da leitura e da formação de leitores. Ela é publicada quinzenalmente, às segundas-feiras.

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