Domingo de Circo
Toda tua chegada nessa radiosa manhã de domingo embandeirada de infância. Solene e festivo circo armado no terreno baldio do meu coração.
As piruetas do palhaço são malabaristas alegrias na vertigem de não saber o que faço.
Rugem feras em meu sangue; cortam-me espadas de fogo.
Motos loucas de globo da morte, rufar de tambores nas entranhas, anúncio espanholado de espetáculo, fazem de tua chegada minha sorte.
Domingo redondo aberto picadeiro, ensolarado por tão forte ardor, me refunde queima alucina:
olhos vendados,
sem rede sobre o chão,
atiro-me do trapézio
em teu amor.
Do livro A Arte de Semear Estrelas, de Frei Betto.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Betinho, 15 anos


Betinho, 15 anos

Publicado: 09/08/2012 por Atila Roque em Direitos HumanosMemórias
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Duas ou três coisas que sei sobre ele

“Essas lembranças são dedicadas a Maria e Henrique”
Esse pequeno artigo foi escrito em 2001 e publicado no livro “Estreito Nós: lembranças de um semeador de utopias”, organizado por Chico Alencar, reunindo uma coletânea de depoimentos sobre Herbert de Souza, o Betinho. Na data em que completa 15 anos desde que ele, bastante a contragosto, nos deixou, achei por bem republicar no Opinativas como uma modesta lembrança dessa figura que tanta falta faz no Brasil de hoje.
Falar sobre Betinho é ao mesmo tempo difícil e fácil. Ele era dessas pessoas que cativam, despertam admiração e simpatia, sem intimidar ou afastar. Muito pelo contrário. Era extremamente acessível. Despertava familiaridade e não se importava de parar para conversar com qualquer pessoa. Mas esta facilidade transforma-se, hoje, em dificuldade para se escrever sobre ele. A escrita empresta certa solenidade ao depoimento e, cá entre nós, Betinho se prestava a tudo, menos às solenidades. Ele as odiava tanto quanto odiava colocar ternos. “Parece sempre que o defunto era maior”, dizia com aquele senso de humor bem de irmão de Henfil. Um humor ferino e autocrítico que se revelava inteiro nos momentos de intimidade com os amigos.
Betinho gostava de rir. E era muito engraçado. Era capaz de tiradas simplesmente imprevisíveis. Como aquela vez em que depois da décima tentativa de falar com ele sobre um projeto que estava apresentando na Câmara dos Deputados, o deputado Amaral Neto – famoso pela defesa da pena de morte, abominada pelo Betinho – resolveu enviar um fax reclamando da indelicadeza da falta de resposta aos seus telefonemas e enviando o texto do projeto. Não lembro mais sobre o que era, mas lembro bem que Betinho achou muito bom e ficou acabrunhado com a própria intransigência por se negar, sucessivas vezes, a atender as chamadas do deputado. Pegou o telefone e quando Amaral Neto atendeu, começou o diálogo assim: “Deputado, desde pequeno minha mãe me ensinou que eu não devia falar com o senhor. Como o senhor pode ver, as mães nem sempre estão certas!”. Pronto. Os dois riram e conversaram. Betinho continuou até o final da vida sendo radicalmente contrário a quase todas as idéias do deputado Amaral Neto, mas naquele dia eles conversaram sobre um projeto que lhe parecia muito bom. Salvos pelo bom humor.
Por essa e por outras é que não sinto muita vontade de escrever sobre o Betinho personalidade pública. Outros certamente o farão com brilho neste livro. Embora tenhamos convivido profissionalmente durante praticamente todo o tempo em que fomos amigos, acho que sempre tive uma certa dificuldade de vê-lo como o herói cívico que ele, de fato, foi. E isso não decorre de nenhum cuidado especial que ele tivesse em preservar a vida privada das inquietudes permanentes da agenda pública com a qual esteve permanentemente envolvido durante praticamente a vida inteira. O engajamento de Betinho com os temas centrais da democracia era visceral e não simplesmente profissional. Era paixão pela vida. Inescapável e avassaladora. Os amigos e a família eram tragados por ela.
Mas as paixões públicas em Betinho conviviam em harmonia com as muitas paixões privadas. E acredito que essas últimas ofereciam os alicerces sobre as quais as primeiras se sustentavam. Uma dessas paixões era a que nutria pelos amigos. Era uma coisa vital e imprescindível. Ele foi uma das pessoas com as quais mais aprendi sobre o sentido profundo e transformador da amizade. Amizade como relação que exige, antes de mais nada, a certeza da intimidade e da confiança mútua. Não me refiro, portanto, a essas amizades modernas que se sustentam principalmente na experiência social cotidiana, o convívio no trabalho, os lazeres compartidos, mas que raramente sobrevivem às descontinuidades inevitáveis da vida. Com Betinho a amizade era uma vivência menos frenética, avessa ao excesso de novidades, mais propensa a descobrir outros ângulos na mesma coisa, às mil variações possíveis, como uma fuga de Vivaldi. E assim se chegava com ele a essa raridade na vida que é a possibilidade de nos tornarmos íntimos de outra pessoa. Era essa intimidade que permitia a Betinho, com cada uma das pessoas com as quais mantinha relações afetivas, imprimir uma marca que dava aquela sensação de exclusividade própria aos amigos.
A nossa intimidade era construída a partir de algumas referências constantes. A música, naturalmente, era uma das principais. Betinho foi em grande medida um dos responsáveis pela redescoberta de uma paixão dos meus 20 anos: as rodas de música. Em alto estilo. Em encontros musicais que gostava de promover na sua casa ou comparecer em casa de outros amigos. Como aquela vez em que ele ligou convidando para uma noite na casa de Aldir Blanc. Privilégio de poucos escolhidos. Mas sem a solenidade que os nomes reunidos poderia suscitar. Nesses momentos eu via Betinho tomado da mais pura felicidade. Tomando cerveja, cantando, arranhando direitinho uns acordes ao violão, sentado em rodas que incluía Aldir, Fátima Guedes, Lenine, Guinga, Sueli Costa, Moacyr Luz, Carlinhos Malta e mais uma penca de craques. Bonito de ver. A música era capaz de mobilizá-lo a ponto de enfrentar uma viagem de muitas horas até uma cidade mineira para assistir a um ensaio do grupo Uakti. Ou se submeter ao risco de vexames como aquela vez em que, distraídos, chegamos – Betinho, Maria e eu –  à porta de um show do Raphael Rabello e do Ney Matogrosso, esquecidos de qualquer dinheiro, cheque ou cartão de crédito. O jeito foi abusar da amizade que ele tinha com Raphael e pedir, faltando 10 minutos para o início do espetáculo, para avisar que Betinho estava na porta, sem dinheiro, mas queria assistir ao espetáculo. Entramos: rindo do vexame e felizes por não termos que voltar para casa.
Betinho também gostava de dirigir, entendia de carros e odiava fuscas. Achava fuscas inseguros. E, para azar dele, durante vários anos, eu tive justamente um fusca, cor-de-abóbora. Era nos momentos em que passeávamos no meu fusca que ele destilava a sua raiva. Chegava quase a praguejar, dizendo sempre que devia trocar o carro antes que ele fosse roubado. Afinal, eu morava em Santa Teresa, o fusca dormia na rua e todos sabiam que era objeto escolhido de ladrões supostamente associados a uma mítica indústria clandestina de bugres. Não sei se fuscas ainda são roubados com freqüência, desconfio que não: bugres saíram da moda. Mas era engraçado surpreender o olhar espantado das pessoas ao reconhecerem Betinho descendo na porta do cinema ou do restaurante de um fusca tão alquebrado. Não imaginavam quanto a contragosto ele se submetia aquilo. Acho que era por amizade e preguiça de dirigir no trânsito do Rio. Ele era, aliás, um excelente motorista. Algo imprudente. Gostava de correr, adorava conduzir o seu Monza automático até Itatiaia. Era defensor de carros grandes, pois os achava mais seguros. Dizia que era melhor comprar um carro grande mais velho do que um pequeno novo.
Itatiaia é um capítulo à parte na vida de Betinho. O paraíso terrestre. Era lá, na linda casa projetada por Noguchi, um arquiteto amigo e genial, que ele cultivava a arte de deixar o tempo passar. Foi no terreno da casa que distribuímos as cinzas do Betinho, conforme era o seu desejo. Entre as mangueiras e lindos pés-de café, no córrego que cruza a propriedade, na horta onde Betinho colhia as folhas de rúcula que acompanhava as maravilhosas refeições tratadas com mão de anjo pela Maria. Era em Itatiaia que ele exercia com esmero o que era o seu principal dote culinário: fazer arroz. Uma verdadeira cerimônia japonesa da qual ele não abria mão: uma delícia. Em Itatiaia jogávamos sinuca e muita conversa fora noite adentro, ao redor da fogueira ou, simplesmente, sentados nos batentes das janelas com olhares perdidos naquele céu inacessível. Conversas na companhia indefectível do Dr.Walber, médico e amigo, contador de histórias e matador na sinuca. Olha, Itatiaia e suas histórias mereciam todo um livro!
Uma paixão tardia, mas avassaladora foi pelos cães. Culpa do Zico, um vira-lata de estirpe certamente nobre, presente recebido pelo filho Henrique que rapidamente ocupou espaço insuspeitável no coração de Betinho. Ele dizia que depois da chegada do Zico tinha passado a entender perfeitamente a clássica explicação do ex-Ministro do Trabalho, Rogério Magri, quando flagrado utilizando carro oficial para o transporte do seu cãozinho doméstico: “Cachorro também é gente!”. E como somente quem ama cães é capaz de entender, o Zico fazia jus à condição humana: comia mamão na colher, assistia ao noticiário deitado na cama e participava das entrevistas aos jornais. A paixão era tanta que comprometia definitivamente a objetividade de Betinho. Por exemplo, ele se recusava a aceitar a óbvia condição (nada degradante, diga-se de passagem) de vira-lata do Zico. Depois de ler ou ouvir falar sobre algumas das características do temperamento dos cães de raça Labrador (apego ao dono, inteligência, gosto pela água etc), encasquetou-se com a idéia de que o querido Zico era um descendente direto de um Labrador. Não adiantavam as óbvias discrepâncias físicas decorrentes do fato de Zico ser um cão de porte definitivamente pequeno, pernas curtas e focinho fino. As dúvidas eram  tratadas como ofensas ao dono. Foi preciso um episódio na ponte Rio-Niterói para desfazer o mal entendido. Estávamos a caminho de Rio Bonito quando avistei, na caçamba de uma camionete, um belo exemplar de Labrador, preto e musculoso, visivelmente habituado aos exercícios físicos que tanto alegram a raça. Virei para Betinho e disse com um prazer quase perverso: “Betinho, olha aí no carro ao lado um cachorro da mesma raça do Zico”. Ele resmungou, emburrou um pouco, mas depois – como sempre fazia quando era pego na contramão – riu e deu o braço a torcer: o parentesco era realmente distante.
Betinho também era herético. A juventude cristã tinha deixado marcas. Preservou o humanismo e a ética da solidariedade, mas desconfiava das religiões institucionalizadas. Quando morreu tivemos muito trabalho em garantir a ausência de símbolos religiosos (crucifixos e coisas afins) no aparato que acompanha a morte. Acho mesmo que flagrei nele um sorriso de Fradim para a nossa dificuldade de encontrar um caixão que não trouxesse alguma dessas marcas. Mas não era uma aversão militante. Estava mais para o gozador e o irônico. Às vezes beirava a provocação. Foi assim uma vez em que falando para um público evangélico disse que para combater a fome era capaz de buscar alianças até com o diabo. Era força de expressão, mas pegou mal e teve que se desculpar. Chegou a conclusão que o diabo era coisa séria e nunca mais repetiu o mote. Gostava de contar e ouvir histórias de assombrações. Eu tenho algumas vividas na adolescência e ele tinha outras tantas, realmente horripilantes. Os fantasmas do Betinho assombravam pra valer, mostravam-se como espectros e faziam muitos ruídos. Mas o que ele apreciava de verdade era juntar sexo e religião. No fundo ele achava que todo padre e toda freira mantêm adormecidos (e às vezes nem tanto) desejos libidinosos prontos a eclodir a menor provocação. Nem as imagens escapavam. Era mestre em encontrar traços dessa lubricidade nas imagens religiosas. Um anjinho com carinha de sacana, uma Nossa Senhora com ares de Maria Madalena antes do arrependimento ou, até mesmo – heresia máxima com as imagens religiosas que o vi capaz de cometer –, traços flagrantemente femininos em uma escultura de Jesus Cristo. Esta última chegou a ser objeto de um ensaio fotográfico onde detalhes da anatomia eram cuidadosamente destacados e ampliados. As fotos foram utilizadas para iludir companheiros de trabalho no Ibase, extremamente pios (e libidinosos), que somente ao final descobriam estar vendo sensualidade em partes do corpo destacados de uma imagem de Cristo. Fui escolhido por Betinho para fazer as fotos e desconfio que alguns que as viram estão até hoje rezando em penitência pelos pensamentos a elas dedicados …
Era também um mestre na arte de convencer você a fazer qualquer coisa. Não tinha escapatória. Ele não sossegava enquanto você não comprava a idéia. Era uma temeridade passar em frente a sua sala de trabalho no Ibase quando estávamos muito atarefados. Ele nos convencia imediatamente a alterar a nossa ordem de prioridades. Saíamos invariavelmente com uma pilha de novas responsabilidades. Costumávamos brincar no Ibase que o Betinho era responsável pelo “departamento das demandas transversais”. Era sim um furacão de idéias. Tinha uma por minuto. Poderia ter gerado mais umas 100 campanhas contra fome. Tomado por um permanente sentido de urgência dizia que não tinha tempo a perder. Brincava com a própria fragilidade dizendo que uma maneira de permanecer vivo era continuar agendando coisas a fazer no futuro. Como não era de faltar a compromissos assumidos trataria, portanto, de não morrer. E quando flagrava nos amigos ou colaboradores um ligeiro (e, às vezes, justificável) ar de cansaço, baixava o espírito de porco do Henfil e perguntava: “quer um pouquinho de AIDS para ficar mais animado?”
Aliás, Betinho não tinha nada de frágil. A energia e a paixão que colocava em quase tudo que fazia nos levava, simplesmente, a esquecer as irredutíveis limitações impostas pela condição original de hemofílico e, depois, de portador de AIDS. Acho que a única vez em que o encontrei realmente frágil e abatido foi por ocasião das mortes dos dois irmãos, Henfil e Chico Mário, com uma diferença de apenas alguns meses. Como ele mesmo escreveu em uma linda e dolorosa carta:  “foi a experiência do horror”. A dor dessas duas perdas ele não teve como evitar. Bebeu cada gota do sofrimento dos irmãos. E foi ali que também decidiu que não iria sofrer para morrer. Arrancou de todos nós, amigos, médicos e família, esse compromisso. Não queria viver até a última gota. A morte não precisava vir acompanhada da dor. Tinha uma tranqüilidade perturbadora com a morte. Aceitava sem medo ou mistério. Era um fato. E foi com essa tranqüilidade que um dia me entregou a bela carta que tinha escrito para a Maria, para ser entregue depois de sua morte. Uma declaração de amor a ela e a tudo que viveram juntos. O fez sem dramas. Disse que deixava duas cópias, uma comigo e outra com o João Guerra, amigo de longa data, explicando marotamente a razão da duplicidade: “Vá lá que você morre primeiro do que eu e não entrega a carta”. Não morri, mas valeu a precaução. O arquivo em disquete entregue ao Guerra foi destruído por um vírus.
A verdade é que Betinho viveu com sabor e gosto. Conheço poucas pessoas que vivem com o prazer e o amor a vida demonstrados por ele. Ele celebrava a vida todos os dias. Dizia ser um homem de sorte por ter sobrevivido a tantas intempéries: hemofilia, ditadura, exílio e AIDS. Foi assim até aquele final de tarde em seu apartamento em Botafogo quando, enfim, morreu cercado pelos amigos mais próximos, com a Maria e os filhos. Ouvindo música e com senso de humor para fazer algumas piadas. O último pedido que me fez foi que trouxesse o violão e tocasse. Infelizmente não deu tempo. Mas assim somos, diria Betinho: um belo dia o tempo nos falta e deixamos coisas a fazer. Dele sinto muitas saudades. Mas raramente sou assaltado por sentimentos de tristeza ou melancolia. Pensar na  minha convivência com Betinho sempre me inunda de alegria. Acho que era assim que ele gostaria que fosse.
Atila Roque
Rio de Janeiro, 20 de Agosto de 2001.


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