A reportagem é de
Viviane Tavares e publicada pela
EPSJV-Fiocruz, 17-01-2013.
Aldeia Maracanã e pescadores artesanais da
Baia de Guanabara, no
Rio de Janeiro; os
Guaranis Kaoiwás, no
Mato Grosso do Sul; os índios
Juruna, e
Yawalapiti, além de outras tantas tribos em
Belo Monte, os quilombolas do
Maranhão e também os de
Minas Gerais, todos esses, além de serem considerados e se autoreconhecerem como comunidades tradicionais compartilham também de outra questão: a luta pela preservação da sua cultura e da sua memória histórica-social.
De acordo com dados da
Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (SCDC/MinC), o Brasil, que se caracteriza por sua multiplicidade sociocultural e se vangloria para o mercado externo desta, é composto por 522 etnias com modos e culturas particulares. Na contabilidade feita pela secretaria, são, no total, oito milhões de brasileiros que vivem em comunidades tradicionais.
A coordenadora de
Pesquisa e Projetos de Povos e Comunidades Tradicionais da SCDC/Minc,
Jô Brandão, lembra que estas comunidades vivem em brigas constantes de direitos, mas que estes não podem ser confundidos com privilégios. Grande exemplo disso é a questão dos territórios, que, para
Jô Brandão, deve ser rediscutida de maneira abrangente e considerando diferentes peculiaridades. "
A lei de terras (Lei 601/1850) do Brasil, que é muito antiga e teve poucas reformas, estabelece o processo de titulação individual, com demarcação de lotes e de quantidade de hectares por família. Isso pode até servir para determinado campo como o de agricultura familiar, mas não serve para o quilombo, por exemplo. Estas comunidades surgem de modo diferente. Existem 300 famílias e o título é apenas um, que demarca o território para a necessidade de sobrevivência deste grupo. A mesma coisa se passa com os indígenas, não tem como intitular um lote para cada família. As terras indígenas têm um espaço coletivo, no qual, várias famílias moram e produzem. Se for intitular uma aldeia com o nome de cada pessoa, de cada família, isso vai virar um problema, além disso, o que nunca levam em consideração é a questão identitária. Não adianta tirar de suas terras de origem e colocá-las em outra com demarcações. Eles não sobreviveriam em um conceito individualista", explica a coordenadora do SCDC/MinC.
Comunidades tradicionais e seus territórios"Nós, que somos os ancestrais habitantes da
Bacia do Xingu, que navegamos seu curso e seus afluentes para nos encontrarmos; que tiramos dele os peixes que nos alimentam; que dependemos da pureza de suas águas para beber sem temer doenças; que dependemos do regime de cheias e secas para praticar nossa agricultura, colher os produtos da floresta e que reverenciamos e celebramos sua beleza e generosidade a cada dia que nasce; nós temos nossa cultura, nossa espiritualidade e nossa sobrevivência profundamente enraizadas e dependentes de sua existência". A carta produzida no encontro
Xingu Vivo para Sempre, realizado em
Altamira (PA) em maio de 2008, mostra a dependência material e afetiva dessas comunidades com a terra.
A grande questão a ser discutida, como explica a coordenadora nacional da
Comissão Pastoral da Terra (CPT),
Isolete Vichinieski, é o reconhecimento dessas comunidades por parte do Estado como espaço diferenciado e sua devida proteção."As comunidades tradicionais têm uma relação diferente com a terra, com a questão da natureza e com a própria organização social. Esses espaços vão muito além do geográfico porque eles são também culturais. Não adianta levar essas pessoas para outra realidade. Além disso, essas políticas compensatórias que acabam gastando muito mais recursos não resolvem porque são, na verdade, uma maquiagem do desenvolvimento, afinal, acabam gerando apenas dependência dessas comunidades que se autosustentavam, em vez de proporcionar uma melhor qualidade de vida às pessoas", analisa.
O professor-pesquisador da
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz),
Alexandre Pessoa, caracteriza esses impasses como empobrecimento da cultura local. "O valor cultural dos povos originários é desconsiderado quando a lógica é do preço e do lucro na perspectiva dos patrocinadores desses grandes empreendimentos. A desterritorialização da
Aldeia Maracanã e de tantos outros espaços que vêm sofrendo as mesmas ameaças significa o empobrecimento da cidade. Infelizmente, este não é um caso isolado, pois verificamos que tanto a lógica da
Copa do Mundo e de outros megaempreendimentos é a mesma, uma visão de cidade empresa", analisa
Alexandre.
Para
Jô Brandão, a questão territorial vai além da posse de terras porque é uma questão identitária e ressalta que essas comunidades têm como uma de suas caracteríticas o modo de vida em coletividade. Ela ressalta que o Brasil é signatário da
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito aos territórios a esses povos e o respeito ao seu modo de vida. "Não existe um indígena sozinho, em seu próprio espaço, ele faz parte de um contexto coletivo. Da mesma forma são os quilombolas, as comunidades de terreiro, os ciganos e outros grupos que a gente reconhece e que se reconhecem como comunidades tradicionais por manter suas práticas culturais ancestrais. Precisamos regulamentar a
Convenção 169, da qual somos signatários há dez anos, para que eles possam de fato fazer valer seus direitos. No entanto, a mobilização tanto das comunidades, quanto da sociedade civil, já conquistou muita coisa nesses últimos anos, mas precisamos lutar mais e ter o direito garantido", diz a coordenadora.
Casos emblemáticosUm dos casos mais recentes de luta pelo território é o do antigo
Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Instalado em um antigo casarão de 1862, o local hoje abriga a
Aldeia Maracanã, na qual convivem hoje índios de diversas etnias como
Puris,
Botocudos,
Tapajós,
Guajajara,
pataxós,
tukanos,
fulni-o e
apurinãs,
Potiguaras,
Guarani,
Kaingáng,
Krikati,
Pankararu,
Xavante,
Ashaninkas, entre outras.. O espaço fica nas proximidades do
Estádio Mário Filho, o
Maracanã - que está em reforma desde 2010 por conta das exigências da
Fifa para abrigar jogos da Copa do Mundo a ser realizada em 2014. A proposta do Governo do Estado é que o espaço cultural seja demolido para dar mais mobilidade ao empreendimento e que os indígenas que vivem no local sejam deslocados por meio de programas compensatórios como, por exemplo, o aluguel social. A demolição do prédio pode ser decidida a qualquer momento pelo
Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2). O
Ministério Público da União já apresentou uma ação contrária à demolição e a Defensoria Pública da União, além de ter recorrido da decisão do TRF, acionou a Fifa, que se posicionou contrária à demolição por escrito, e também recorreu à comissão de direitos humanos da Organização dos Estados Americanos para que o debate tome caráter internacional.
O defensor público federal
Daniel Macedo, um dos responsáveis pela ação, defende que o espaço habitado pelos indígenas é inegociável. Além disso, ele explica que as propostas já realizadas não levaram em consideração as particularidades dos grupos afetados. "Para a reinserção desses índios, eles devem ser colocados em local congênere; deve haver um depósito público para a guarda dos bens, a
Vara da Infância e Juventude deve ser comunicada por conta das crianças que vivem no local, entre outras coisas. Não dá simplesmente para entregar um aluguel social como forma compensatória", explica.
O professor
Alexandre Pessoa lembra também o caso dos pescadores artesanais da
Baia de Guanabara e da
Baia de Sepetiba, que vêm sofrendo por conta das construções do
Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) e da
ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA). "Os pescadores artesanais, que trazem sua cultura de várias gerações e têm o cordão umbilical diretamente ligado com os ecossistemas também estão sofrendo violações de direitos humanos. Eles estão sendo expulsos dos seus territórios porque as baias estão perdendo a finalidade de ecossistemas e de bens comuns. Dentre as suas reivindicações está o reconhecimento dessas comunidades como tradicionais, o direito à pesca e aos seus territórios, a exemplo do Movimento Pescadores e Pescadoras artesanais (MPP)", explica
Alexandre. E completa: "Eles vêm perdendo a sua fonte de renda por meio da pesca artesanal e de subsistência e, consequentemente, perdendo seu território, sua saúde e habitação. Isso significa que milhares de famílias têm saído de uma condição historicamente constituída. Precisamos fazer uma vigilância ao desenvolvimento".
Jô Brandão explica que desde o
Decreto 6040/07 as comunidades caiçaras e os pescadores artesanais já são consideradas comunidades tradicionais e também têm representantes na
Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), que atua com apoio do
Ministério do Desenvolvimento Social no fortalecimento social, econômico, cultural e ambiental dos povos e comunidades tradicionais. "O caso dos caiçaras que vivem de pesca artesanal ainda é mais complicado porque esbarra também na questão ambiental, como é vivido pela comunidade da região da
Jureia, em
São Paulo, que se encontram agora em uma área de preservação ambiental. Dependendo do formato e do modelo desta área de preservação, ela não permite a presença das pessoas no local, que é o caso de lá, e isso tem gerado muito conflito porque os caiçaras estão ficando desamparados", lembra.
O caso do município de
Âlcantara, no
Maranhão, onde vivem mais de 100 quilombos também é lembrado por
Jô Brandão. Segundo ela, os quilombolas estão sofrendo ameaças pela segunda vez de serem expulsos de suas terras, por conta de obras de ampliação do
Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), do Comando da Aeronáutica, mas por meio da luta e o amparo pela Convenção 169 impediu este novo deslocamento. A primeira vez foi na construção do CLA na década de 80, em que os quilombolas foram vítimas de deslocamentos compulsórios.
A construção da
Hidrelétrica de Belo Monte, na barragem do
Rio Xingu, no Pará, também é emblemático nessa questão. Considerada a maior obra do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, a construção além de ter sérios impactos ambientais (ver na matéria publicada no site da EPSJV), deve deslocar 14 diferentes povos indígenas, totalizando milhares de famílias, de suas terras originárias. O estudo de viabilidade técnica vem sendo executado desde 1980, mas foi em 2009, momento em que foi apresentado o novo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e logo após, no início de 2010, quando o
Ministério de Meio Ambiente concedeu a licença ambiental prévia para sua construção, que os conflitos ficaram mais tensos. Até agora grande parte das condicionantes propostas no estudo não foram cumpridas, no entanto, o projeto está sendo realizado.
"O Brasil vem caminhando na contramão da preservação de patrimônio histórico e cultural dessas comunidades que chegaram antes da gente. Em nome do capitalismo, do empreendedorismo, estão fulminando culturas como os índios e os quilombolas. Infelizmente, vivemos um momento obscuro na manutenção desses povos indígenas e tantos outros povos. O Brasil que vende a imagem de ter índios e negros está acabando com esses povos. É inimaginável que por conta de um evento ou de uma construção estamos limando nossa história", lamenta o defensor público federal.
Desenvolvimento x tradição?O desafio se dá por conta da preservação das comunidades tradicionais e o meio em que vivem e o desenvolvimento do país, mas estes dois caminhos são conflitantes? Para
Jô Brandão a resposta é não, mas essa é a principal barreira a ser enfrentada. "De um lado você tem uma legislação de amparo e reconhecimento, mas que ainda é falha, e de outro, você tem um projeto de desenvolvimento que não leva em consideração esses povos. A questão é conciliar a proposta de desenvolvimento com a preservação da vida. As comunidades que reivindicam seus direitos não são contrárias ao desenvolvimento", analisa.
Isolete, da
CPT, afirma que no Brasil atualmente existe um alto índice de conflito territorial e agrário em função de inúmeras propostas de infraestrutura que estão sendo desenvolvidas ou previstas em áreas que constam como territórios tradicionais. "Quando se assume uma proposta de um modelo de desenvolvimento do país, tem que se pensar a partir das comunidades, das pessoas. Mas o que vemos hoje é diferente. O modelo de desenvolvimento atual é a partir do interesse de grandes corporações nacionais e internacionais, a partir de interesses econômicos". E ressalta: "Essas grandes obras estão sendo colocadas como uma saída econômica para o Brasil, assim como o projeto desenvolvimentista da década de 1970. A gente acaba repetindo o mesmo projeto que teve consequências negativas, como os inchaços das cidades e a precarização das relações de trabalho".
A coordenadora da
CPT indica ainda que o caminho para o desenvolvimento possível deve respeitar essas comunidades e fortalecê-las de forma a levar em conta seus conhecimentos seculares. "Precisamos pensar em um modelo que possa se relacionar com as pessoas, com a natureza e as cidades de forma sustentável. É uma maneira de alavancar um projeto de desenvolvimento do Brasil. O exemplo claro disso é a agroecologia, que hoje é a grande responsável por produzir alimentos consumidos no país", destaca.
fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517120-territorio-das-comunidades-tradicionais-uma-disputa-historica